sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Os periquitos de Anita


Eram idos de 1972 quando D. Mariinha (com o zelo peculiar que só das mães se depreende) encarregou-se de matricular-me na então Escola Paroquial São Vicente de Paulo (cuja fundação remonta a 18 de março de 1949 e onde atualmente funciona o Instituto Educacional Vida Nova), o famoso e conhecido “Grupo de Anita”.

Para quem não sabe, no sertão quase sempre o nome não nos parece suficiente e corriqueiramente somos atrelados ora aos nossos ascendentes, ora aos nossos descendentes, por isso é muito comum ser chamado de Chico de Altino, Maria de Zuca, Zé de Baruc e até Júnior de Teófilo. O grupo, indubitavelmente, era de Anita. Minha primeira escola.

O educandário que funcinava da 1ª a 4ª série tinha um plantel de professores que ainda lembro com imensurável saudade: D. Olinta, Beatriz, Magnólia, Lúcia de Tião (in memoriam), Toinha de Vicente Cândeia, Teté de Aluísio (in memoriam), Lucila (minha primeira professora), Socorro de Jesus, Irene, Artemisia Gomes, Laura Wanderley (in memoriam), Jovina de Dodó e Socorro de Nivaldo. Nego Charles era o guarda e quem corria atrás dos gazeteiros. Anita, era a diretora.

No recreio, embora levasse a minha lancheira em formato de porquinho azul e branco, eu me esbaldava mesmo era na merenda oferecida pela escola: arroz doce, angú, papa de milho (que se bebia em copos plásticos azuis fornecidos pelo governo estadual), broa preta e macarrão (pilar) com sardinha coqueiro. Uma delícia.

Na minha lancheira iam Ki-Suco de groselha, orelha-de-pau, ovo, e as vezes, tapioca com manteiga da terra. Dinheiro para lanchar, nem ver! com uma fartura dessas nada mais era preciso.

Quando muito, no dia das crianças, ganhávamos balinhas juquinha e pirulito zorro, mas só no dia das crianças.

A professora Anita era uma espécie de Golberi do Couto e Silva (guardada as devidas proporções, e na mais benéfica das comparações). Ela era diretora, disciplinadora, professora e muitas vezes mãe de todos os seus alunos, ocupando esse e todos os outros (en)cargos que por ventura existissem ou fossem criados. Era, por excelência, uma educadora de mão cheia e que ocupava todos os espaços, sempre com vigilância e responsabilidade, verdade seja dita.

Costumava passar em revista a tropa de alunos pessoalmente antes daquele mundareu de alunos fardados em verde e branco desabotoassem a entoar hinos e orações.

A despeito do verde e branco que compunha a farda escolar, não é dispendioso dizer que a molecada dos outros estabelecimentos escolares logo cuidaram de nos batizar de “periquitos de Anita.” E sempre tinham aqueles mais ousados que propositadamente suprimiam do epíteto o “e”, nos colocando em situação vexatória.

Embora franzina e baixinha, quando a questão era educação ou disciplina, Anita ia às últimas consequências. Comparo a sua disciplina escolar à severidade da educação dos padres espanhóis, a sua pontualidade e cobrança à dos relojoeiros britânicos.

Lembro bem que a lição da escola era, cotidianamente, antecedida pela tomada, em voz alta, com todos alinhados em formação de pelotão militar, do hino nacional, da bandeira e do hino a Pombal, antes, porém, debulhava-se um rosário de pai de nosso e de ave-marias, entrecortadas por algumas poucas palavras em latim, ditas pela diretora, claro. E ai da orelha que o proprietário se descuidasse da oração, dos hinos ou desviasse a atenção para qualquer outra “circunstância mundana”.

A propósito do mundano, não recordo exatamente quando nem onde a palavra carnaval incoroporou-se ao meu miúdo universo vocabular. Lembro-me, porém, que por muito tempo para mim, carnaval não passava de um sinônimo de pecado, e pecado grande, mortal, para ser mais exato. A razão disso tudo? Advinha? A diretora da Escola Paroquial São Vicente de Paulo. A professora Anita era tão enfática em afastarnos dos entrudos, que carnaval e besta fera para mim eram a mesma entidade: “Uma festa que celebra prazeres da carne só pode ser a porta de entrada para o reino das trevas”, bradava ela em intermináveis sermões vespertinos sempre antes do período momesmo. Certa vez, ela descreveu o tal reino com uma riqueza de detalhes tão grande, foi tão convincente em suas exposições que jurei que ela estivera pessoalmente lá. Mas isso já é outra história. O certo é que, um pouco por temor e um outro por impositiva timidez, procurei manter-me prudentemente à distância do portal do inferno.

Sair da rua Odilon Lopes para o grupo de Anita era outra aventura incompreensível para um gordinho de 4 ou 5 anos de idade. A princípio, tinha de vencer o medo de passar em frente à casa da Dona Joana, mãe do negro Panela, que por conta do seu intratável vitiligo logo recebeu a alcunha de “Papa Figo”. Passar em frente a casa da velha, então, só acompanhado, e para isso me servia Dadá de Raimundo Pacífico, que da Rua do Fogo me acudia o caminho.

Dadá era mais velha, estudava no mesmo grupo, tinha a confiança de Dona Mariinha e a tarefa de nos acompanhar pelo caminho, gostava muito de ler e cheirava bem, o que era incomum numa cidadezinha onde não havia livros nem loja de cheiro. Um dia, Dadá me pediu para apanhar sua bolsa escolar esquecida sobre a mesa, onde em cima se encontrava uma caixinha colorida com uma amostra grátis, que se lia perfume seiva de alfazema. Abri a caixinha, destampei o frasco e aspirei: uma viagem! Prometi a mim mesmo que, tão logo pudesse, compraria aquele cheiro. Uns quatro anos depois realizei o sonho e nele estou imerso até hoje.

Pois eis que, na semana passada me dou conta de que o meu estoque de seiva de alfazema chegou ao fim. Como se trata de um perfume barato, encontrável em qualquer armárinho de subúrdio, não me preocupei. Certamente, quando fosse a uma dessas bodegas, compararia uma dúzia de caixas e o caso estaria encerrado. Ledo engano. Não havia mais seiva de alfazema no mercado, nem na bodega, nem na farmácia nem em lugar algum. Uma senhora também usuária da mesma água de cheiro, em tom quase apocaliptico deu-me a sentença: “Como se trata de um produto antigo, talvez tivesse saído de circulação.” Impossível! A Gessy Lever não faria isso comigo e juro que peticionária a Justiça cobrando a devida idenização. Não é justo viciar alguém assim e deixá-lo entregue a própria sorte.

Mas, antes disso, peço aos amigos e, principalmente, às amigas que em suas andanças por aí, se encontrarem o meu cheiro, compre pra mim (é baratinho) e me deêm de presente no dia do advogado, dos pais, dos amigos, dos anciãos, dos desesperados... É com esse cheiro e vestido de verde e branco que pretendo encontrar-me novamente nos bancos escolares do Grupo de Anita, nem que seja na eternidade.

4 comentários:

Unknown disse...

Belo texto. Talvez muita gente ainda não entenda com profundidade aquela conhecida frase:LUGAR DE CRIANÇA É NA ESCOLA.(Pois lá certamente vivemos um dos momentos mais importantes e significativos da vida,onde junto com a familia e principalmente com os principios cristãos, se forma a raiz da existência humana). No meu caso, me recordo do velho Educandario Nossa Senhora de Fátima,seus professores e sua grande oiticica no meio do pátio;e a farda azul e branca do Colégio Josué Bezerra e para concluir, o Estadual Arruda Câmara. (Recordar é viver).

Unknown disse...

VAMBERTA COMENTA:
Encontrei seu texto por acaso,estava procurando o Colégio Josué Bezerra, que leva o nome do meu bisavô, exatamente no momento em que recordava e contava a meu esposo o quanto fui feliz nessa época. Também estudei na mesma escola(Grupo de Anita- 1977 à 1979).Observando a
foto,a frente da escola continua a mesma, mas a rua era de barro.
Quanto ao seu perfume,tenho na minha casa, meu esposo usa.Ele compra em um mercadinho no Bairro dos Estados- João Pessoa.
Um abraço!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Cícero disse...

Como é fantástica, indelével, inexorável, democrática e atemporal a saudade...
Identidiquei-me como Tudo o que li de saudades e relembranças neste blog como se eu tivesse vivido exatamente o que vc narra na sua cidade nos anos idos, posto que também sou de uma cidade pequena Missão velha no Cariri cearense. Até com relação ao Mengo da era Zico, foi igual...
Parabéns pelo Blog.
José Cícero - Aurora-CE.
www.prosaeversojc.blogspot.com
www.blogdaaurorajc.blogspot.com