sábado, 16 de fevereiro de 2008

O velho Antônio, o Grande.


Há pessoas que aportam em nossa vida feito barquinho de papel navegando em riacho doce e, quando menos se espera, aproxima-se calmo, silenciosamente, sem vexame, baixa âncora e tornam-se pinturas azuis colorindo os nossos céus. Foi assim encontrei o velho Antônio Grande (era assim que o chamávamos), despercebidamente em uma dessas tantas manhãs de minha infância de moleque pobre e de pouco sonhos. Trazia o velho Antônio o pulsar de todos os dias (e não eram poucos) e de todas as horas, pele enrugada, encouraçada pelos verões da ditosa Timbaúba, franzino, chamuscado pelo sol e pelo peso do tempo, pareceu-me dispendioso somar toda a sua existência, toda a sua idade achovalhada nos retalhos e veios do seu rosto comum de tantos Josés, Joaquins, Franciscos. A sua imagem, a que vi primeiro, era desalvoroçadamente mansa, trôpega em suas sandálias (costuradas de arame), desenhavam a obstinação daqueles que nada têm e dos que nada pedem. Contentava-se em estar vivo e fez da vida a vida que plantou, semeando no seco, no esquecimento e na solidão que lhe restou.

Tudo estava no seu agrado. Tudo estava bom.

Recordo-me que era domingo quando o avistei e depois foram nossos todos os domingos que se seguiram. De logo o habitei na minha infância com a mesma quietude que se apresentava na vastidão do seu mundo de palavras poucas e letras nenhuma.

Se comprazia com a natureza e travava com as plantas colóquios intermináveis. Feriu a terra com as mãos e debulhou a vida em seus dedos com a mesma desenvoltura dos que amam incondicionalmente.

Agregou-se a família dos meus avós com tamanha doação que não teve tempo para apegos materiais. Nasceu escravo e morreu escravo de todas as vontades, exceto a sua.

Da última vez que o vi, restava pouco daquele barquinho de águas mansas e do riacho doce. Ontem, nos desobedeceu pela primeira vez em tantos anos e partiu sozinho, sem vexame, sem alvoroço, navegando os seus sonhos em seu barquinho de papel.

Se foi sem despedidas, não deixou bens, mulher nem filhos. Só saudades.

A timbaúba, o carro de boi e a casa onde viveu seus últimos anos continuam lá, sozinhas, enormes, e eternamante vazias.

Um comentário:

Unknown disse...

tic,tac...tic,tac...somos o mesmo velho antônio, isso mesmo...cada um de nós. (por exemplo:quntas pessoas você conhece que nasceu a duzentos anos atrás ?) tic,tac...tic,tac...