domingo, 30 de setembro de 2018

Cuidas que o genesíaco prazer,
Fome do átomo e eurítmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!

Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!

Surdos destarte a apóstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descamados,
Em convulsivas contorções sensuais,

Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!

Augusto dos Anjos 

Sequilho com goiabada

Criei o costume de, toda semana, comprar sequilho com goiabada na padaria perto daqui de casa. Comê-lo bebendo um café sem açúcar tornou-se, sem exagero, um dos momentos mais deliciosos da semana (tirando o dia da coxinha com café). Mas a goiabada me incomodava. Não necessariamente ela, mas sua pouca quantidade. Era um pingo no meio do sequilho.

Reclamei na padaria, chamei o padeiro de casquinha e tudo mais. Outro dia, voltando do trabalho, passei pela padaria e, pra minha sorte, disseram que havia um sequilho especial pra mim. Lá estava, o meu sonho num sequilho de um real. Quase que completamente coberto de goiabada.

Chegando em casa, preparado o café e toda a ritualística necessária para consumir o apetecível sequilho, ocorreu que não comi nem a metade. Enjoei na segunda mordida. Doce demais, chegava a dar náuseas. Dia seguinte, cheguei na padaria e lá estava: outro sequilho coberto de goiabada. Me ofereceram e, por vergonha de dizer que odiei o do dia anterior, comprei. Em casa, raspei a goiabada e comi.

O problema, o inferno, não era a goiabada nem o padeiro, era eu. Fui eu que, amando o que amava, queria do meu jeito, sem entender que eu gostava era do jeito que era, porque, se do meu jeito fosse, eu rejeitaria, enjoaria e até tentaria fazê-lo voltar a ser como era.

Assim fazemos com as pessoas também. No início, as amamos como são, depois que estão conosco começamos a criticar, tentamos mudá-las, tentamos “colocar do nosso jeito”, sem saber que nosso jeito são nossas projeções, pessoas que não existem e que, se existissem, enjoaríamos delas.

Transformamos para descartar, porque quando aquela pessoa muda, muito provavelmente de quem gostávamos não está mais lá.

Autor desconhecido

Amigo de si mesmo

Em seu recém-lançado livro Quem Pensas Tu que Eu Sou?, o psicanalista Abrão Slavutsky reflete sobre a necessidade de conquistar o reconhecimento alheio para que possamos desenvolver nossa autoestima. Mas como sermos percebidos generosamente pelo olhar dos outros? Os ensaios que compõem o livro percorrem vários caminhos para encontrar essa resposta, em capítulos com títulos instigantes como Se o Cigarro de García Márquez Falasse, Somos Todos Estranhos ou A Crueldade é Humana. Mas já no prólogo o autor oferece a primeira pílula de sabedoria. Ele reproduz uma questão levantada e respondida pelo filósofo Sêneca: “Perguntas-me qual foi meu maior progresso? Comecei a ser amigo de mim mesmo”.

Como sempre, nosso bem-estar emocional é alcançado com soluções simples, mas poucos levam isso em conta, já que a simplicidade nunca teve muito cartaz entre os que apreciam uma complicaçãozinha. Acreditando que a vida é mais rica no conflito, acabam dispensando esse pó de pirilimpimpim.

Para ser amigo de si mesmo é preciso estar atento a algumas condições do espírito. A primeira aliada da camaradagem é a humildade. Jamais seremos amigos de nós mesmos se continuarmos a interpretar o papel de Hércules ou de qualquer super-herói invencível. Encare-se no espelho e pergunte: quem eu penso que sou? E chore, porque você é fraco, erra, se engana, explode, faz bobagem. E aí enxugue as lágrimas e perdoe-se, que é o que bons amigos fazem: perdoam.

Ser amigo de si mesmo passa também pelo bom humor. Como ainda há quem não entenda que sem humor não existe chance de sobrevivência? Já martelei muito nesse assunto, então vou usar as palavras de Abrão Slavutsky: “Para atingir a verdade, é preciso superar a seriedade da certeza”. É uma frase genial. O bem-humorado respeita as certezas, mas as transcende. Só assim o sujeito passa a se divertir com o imponderável da vida e a tolerar suas dificuldades.

Amigar-se consigo também passa pelo que muitos chamam de egoísmo, mas será? Se você faz algo de bom para si próprio estará automaticamente fazendo mal para os outros? Ora. Faça o bem para si e acredite: ninguém vai se chatear com isso. Negue-se a participar de coisas em que não acredita ou que simplesmente o aborrecem. Presenteie-se com boa música, bons livros e boas conversas. Não troque sua paz por encenação. Não faça nada que o desagrade só para agradar aos outros. Mas seja gentil e educado, isso reforça laços, está incluído no projeto “ser amigo de si mesmo”.

Por fim, pare de pensar. É o melhor conselho que um amigo pode dar a outro: pare de fazer fantasias, sentir-se perseguido, neurotizar relações, comprar briga por besteira, maximizar pequenas chatices, estender discussões, buscar no passado as justificativas para ser do jeito que é, fazendo a linha “sou rebelde porque o mundo quis assim”. Sem essa. O mundo nem estava prestando atenção em você, acorde. Salve-se dos seus traumas de infância. Quem não consegue sozinho, deve acudir-se com um terapeuta. Só não pode esquecer: sem amizade por si próprio, nunca haverá progresso possível, como bem escreveu Sêneca cerca de 2.000 anos atrás. Permanecerá enredado em suas próprias angústias e sendo nada menos que seu pior inimigo.

Martha Medeiros é jornalista e escritora brasileira

A vida e a morte

O que é a vida e a morte
Aquela infernal inimiga
A vida é o sorriso
E a morte da vida a guarida

A morte tem os desgostos
A vida tem os felizes
A cova tem a tristeza
E a vida tem as raízes

A vida e a morte são
O sorriso lisonjeiro
E o amor tem o navio
E o navio o marinheiro

Florbela Espanca 

Curiosidade


O "Grande Sertão" e a canção de Siruiz

Um dos elementos simbólicos recorrentes do Grande Sertão: Veredas é a “canção do Siruiz”, uma cantiga entoada pelos jagunços, que não sai da memória de Riobaldo, e é evocada várias vezes por ele ao longo da narrativa.
A cantiga é composta das estrofes abaixo, que na minha opinião são uma mistura de versos anônimos e versos de Rosa:
Urubu é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti – água azulada,
carnaúba – sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando eu vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...
Esta é a versão que é citada pela primeira vez no livro (págs. 114-115; todas as citações são da 2ª. edição, 1958).
Quando acontece isso? Riobaldo está recordando a primeira vez que avistou Joca Ramiro (seu futuro chefe guerreiro; e pai de Diadorim), bem como os lugares-tenentes deste, o Ricardão e o Hermógenes. Os futuros vilões do romance.
É um episódio de quando Riobaldo, menino, já está morando na fazenda de seu padrinho Selorico Mendes (que depois entendemos ser seu pai biológico). Batem à porta, de madrugada. Riobaldo pula da cama, mas o padrinho já está botando para dentro de casa meia dúzia de homens encapotados, de chapelões desabados no rosto, armas, esporas tilintando. Jagunços em pé de guerra.
O padrinho manda fazer café, e começam as conversas. Joca Ramiro e os jagunços querem abrigo e esconderijo para a tropa, por um dia. Começam a ser tomadas providências, e o menino Riobaldo, olhos muito abertos, não perde nada daquilo. Vai servir de guia; e caminha na escuridão com os homens, até onde está a tropa.
De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. (p. 113)
A tropa é maciça, escura e surdamente ruidosa, faz um barulho “que nem o dum grande rio”. O menino se impressiona, vê mais os cavalos que os homens, aos poucos distingue no escuro os chapéus, os rifles. E começa a guiar os cavaleiros rumo ao arrancho; e é aí que o jagunço Siruiz canta aqueles versos.
Um dado interessante da canção do Siruiz é que no romance ela geralmente está associada às enumerações dos jagunços. Em termos de roteiro de cinema, ela seria a “Canção Tema da Horda Guerreira”. Basta comparar:
Anos depois, nas págs. 165-166, vem a enumeração dos guerreiros no parágrafo começando por “Permeio com quantos, removido no estatuto deles...”  E logo depois, pág. 168, surge o refrão da cantiga, quando Riobaldo descobre, no susto, que Siruiz foi morto em combate. Ensinam-lhe então
...outra, que era cantiga de se viajar e cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida:
Olerereeêe, bai-
ana...
Eu ia e
não vou mais:
Eu fa-
ço que vou lá dentro, oh baiana,
e volto
do meio
p’ra trás...
E é com esse refrão que Guimarães Rosa retoma o tema recorrente de seu primeiro livro, Sagarana, a ida e a volta, “for a walk and back again” como diz uma das epígrafes da obra.
Note-se que existe uma melodia subentendida, a meu ver, indicada pelo escritor com essas quebras de palavra entre uma linha e outra. Um recurso frequente de letristas querendo deixar claro um salto melódico, um hiato, uma quebra qualquer na dicção oral. (Em outras edições que consultei, essa disposição gráfica é modificada; com alguma perda, acho.)
E observe-se também que o “oh baiana” é responsório tradicional de um milhão de cantigas da tradição oral. (Quem não lembra Alceu Valença – “Pois eu tenho um espelho cristalino, oh baiana... / Que uma baiana me mandou de Maceió, oh baiana...”)
(desenho de Guimarães Rosa, com sugestões para o ilustrador Poty)
Outra enumeração de peso, a mais longa do livro, é a que surge nas páginas 301-303, a partir do parágrafo “Aí o senhor via os companheiros...”. São dezenas de nomes, numa verdadeira enumeração homérica, que a crítica já comparou com o famoso “Catálogo das Naves” do Livro 2 da Ilíada.
E antes de recordar cada nome (seguido de uma frase breve retratando o antigo companheiro), Riobaldo (pág. 300) conta que num momento de solidão lembrou da cantiga de Siruiz e compôs para a melodia dela esses versos “sem razoável valor”:
Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p’ra comprar o fim do mundo
no meio do Chapadão.
Urucuia – rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.
Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão...
Não é casual a menção ao “fim do mundo”.  A esta altura, os crimes imperdoáveis já aconteceram; e o bando está em perseguição aos “hermógenes”, com sede de vingança.
E há mais uma enumeração, à pág. 511, quando os bandos convergem um sobre o outro, preparando a batalha final do Paredão. Riobaldo volta a lembrar, nome por nome, os jagunços, a quem chama comovido de “irmãos meus”, “meus filhos”, no parágrafo que se inicia com “Todos. E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu pessoal...
Mas a batalha final se aproxima, e Riobaldo sabe disso: “E, veja, se vinha, eu comandei: – “É guerra, mudar guerra, até quando onça e couro... É guerra!...” E ele recorda de novo a canção do Siruiz:
Olererê
Baiana...
Eu ia
e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, ó Baiana:
e volto
do meio
p’ra trás!  (pág. 513)
Como se a cada vez que Riobaldo “passasse as tropas em revista” na memória ouvisse de novo a canção daquela madrugada em que ele viu pela primeira vez o seu destino futuro, a vida de jagunço, e o corte mortal entre Joca Ramiro e o Hermógenes.
A canção surge num momento mágico, de infância. O menino é tocado pela dimensão épica e cavalariana da vida jagunça. E sempre que a tropa desfila na sua lembrança, retorna a cantiga; e quando ele evoca a cantiga, esta traz à tela da memória a tropa.
A letra da canção traz camadas superpostas de significado. O “faço que vou, mas não vou” é o drible, é o negaceio, a quebrada inesperada com que o jagunço ilude perseguidores.
Ao mesmo tempo, é um aviso inconsciente de Riobaldo de que ele tantas vezes larga uma missão pela metade, desiste ou hesita na hora de definir.
Também é uma espécie de Paradoxo de Zenão: antes de chegar ao ponto X eu tenho que regredir a um ponto anterior, e assim sucessivamente. Uma armadilha lógica que evoca também a armadilha social em que o jagunço Riobaldo está preso: eu quero casar com uma mulher e ser fazendeiro em paz, mas antes eu tenho que matar algumas dezenas de criminosos que mataram meu chefe.
Naquele trecho da pág. 168, quando ele descobre que Siruiz morreu, ocorre-lhe que agora aquela canção inicial está sendo preservada nele, Riobaldo. Mais do que as próprias canções dele próprio:
Pois foi – que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?
Porque o terceiro sentido, mais psicológico, mais metafísico, é o da ida e volta da memória em si. Tema evocado por Ariano Suassuna quando chama o seu próprio “Grande Sertão” de Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue de Vai e Volta. A memória indo e vindo, como lançadeira de tear, para não deixar que as vidas (as canções) se percam. 
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

sábado, 29 de setembro de 2018

Ó tu do meu amor fiel traslado
Mariposa entre as chamas consumida,
Pois se à força do ardor perdes a vida,
A violência do fogo me há prostrado.

Tu de amante o teu fim hás encontrado,
Essa flama girando apetecida;
Eu girando uma penha endurecida,
No fogo que exalou, morro abrasado.

Ambos de firmes anelando chamas,
Tu a vida deixas, eu a morte imploro
Nas constâncias iguais, iguais nas chamas.

Mas ai! que a diferença entre nós choro,
Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.

Gregório de Matos

Carcará - Zé Ramalho

A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros 

Os homens (diz uma antiga máxima grega) são atormentados pelas ideias que têm das coisas, e não pelas próprias coisas. Haveria um grande ponto ganho para o alívio da nossa miserável condição humana se pudéssemos estabelecer essa asserção como totalmente verdadeira. Pois, se os males só entraram em nós pelo nosso julgamento, parece que está em nosso poder desprezá-los ou transformá-los em bem. Se as coisas se entregam à nossa mercê, por que não dispomos delas ou não as moldarmos para vantagem nossa? Se o que denominamos mal e tormento não é nem mal nem tormento por si mesmo, mas somente porque a nossa imaginação lhe dá essa qualidade, está em nós mudá-la. E, tendo essa escolha, se nada nos força, somos extraordinariamente loucos de bandear para o partido que nos é o mais penoso e dar às doenças, à indigência e ao desvalor um gosto acre e mau, se lhes podemos dar um gosto bom e se, a fortuna fornecendo simplesmente a matéria, cabe a nós dar-lhe a forma.
Porém vejamos se é possível sustentar que aquilo que denominamos por mal não o é em si mesmo, ou pelo menos que, seja ele qual for, depende de nós dar-lhe outro sabor e outro aspecto, pois tudo vem a ser a mesma coisa. Se a natureza própria dessas coisas que tememos tivesse o crédito de instalar-se em nós por poder seu, ele se instalaria exatamente da mesma forma em todos; pois os homens são todos de uma só espécie e, exceto por algo a mais ou a menos, acham-se munidos de iguais órgãos e instrumentos para pensar e julgar. Mas a diversidade das ideias que temos sobre essas coisas mostra claramente que elas só entram em nós por mútuo acordo: alguém por acaso coloca-as dentro de si com a sua verdadeira natureza, mas mil outros dão-lhes dentro de si uma natureza nova e contrária.

Michel de Montaigne

"Não há nada que esteja menos sob o nosso domínio que o coração, e, longe de podermos comandá-lo, somos forçados a obedecer-lhe". 

Jean-Jacques Rousseau

"Eu deixo aroma até nos meus espinhos, ao longe, o vento vai falando de mim". 

Cecília Meireles


sexta-feira, 28 de setembro de 2018


Frase


A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las!

Santo Agostinho

“Tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não são os amores felizes mas os contrariados.”