segunda-feira, 31 de julho de 2017



No banquete da vida a amizade é o pão, e o amor é o vinho.

Paolo Mantegazza

Tolkien e Guimarães Rosa

Uma vez, conversando com amigos estrangeiros, perguntaram-me quem era o maior escritor brasileiro; respondi que era Guimarães Rosa. Ninguém tinha ouvido falar nele; quiseram saber que tipo de escritor era. Eu disse: “Imagine os romances de J. R. R. Tolkien escritos por James Joyce.” 
Riram porque pensaram que era piada, mas não era, era um mero exagero. A crítica literária brasileira, especialmente a que sofreu influência do Concretismo paulistano, sempre compara Rosa com Joyce; nunca vi ninguém compará-lo com Tolkien. E no entanto a obra dos dois tem imensas semelhanças, que me voltam à mente ao assistir o terceiro episódio da magnífica trilogia O Senhor dos Anéis de Peter Jackson.
Tanto Rosa quanto Tolkien imaginaram uma região mítica, fundada em suas vivências pessoais e em suas fantasias metafísicas. 
O Sertão de Rosa é, para usar uma linguagem meio pedante, semanticamente realista (porque tudo ali é observado, é anotado em caderneta, é pesquisado junto aos mais-velhos: usos, costumes, lugares, plantas, bichos) mas sintaticamente mágico, porque os acontecimentos e os destinos dos personagens parecem orquestrados por potestades invisíveis. 
Esse sertão que na superfície é tão mineiro, tão geográfico, tem uma escala épica que o transforma no campo de batalha entre as forças de Deus e as do Diabo.
Quanto a Tolkien, criou a Terra Média (Middle Earth), supostamente uma era remota no passado do nosso planeta, povoada por reis, guerreiros, e raças fantásticas (elfos, anões, orcs, trolls, etc.), que foram varridas da Terra depois que o Homem tornou-se o seu dono. 
À primeira vista, o mundo de Tolkien é totalmente fantástico, mas basta ler uma biografia sua (especialmente a de Humphrey Carpenter) para ver como seu processo criativo era realista. 
Tolkien compunha para seus reis árvores genealógicas inteiras, que se estendiam por milênios. Os elfos têm uma linguagem completa, toda inventada por ele (e falada pelos atores em trechos dos filmes). Seu cuidado ao descrever as aventuras de Frodo o fazia calcular desde a fase da lua em determinada noite até quanto tempo alguém levaria para ir a pé ou a cavalo de um lugar para outro (aspecto em que autores de romances não-fantásticos, como Walter Scott, muitas vezes se fazem de doidos).
Apesar das evidentes diferenças entre Grande Sertão: Veredas e O Senhor dos Anéis, ambos têm um sopro épico semelhante, ambos são a epopéia de um grupo pequeno de guerreiros do Bem enfrentando um grupo impiedoso de guerreiros do Mal. 
Os “orcs” da Terra Média e os “hermógenes” que Riobaldo enfrenta nas batalhas sertanejas são personificações do Mal que um herói hesitante e problemático precisa derrotar. 
Há muitos paralelos de detalhes que podem ser traçados entre as duas obras, mas mais importante do que isto é o espírito de nobre maniqueísmo medieval que os dois autores compartilhavam. O Bem existe. O Mal também. E é preciso pegar em armas para combater o Mal.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

Não digas nada

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não digas nada
Deixa esquecer


Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada…
Mas ali fui feliz
Não digas nada.


Fernando Pessoa, in “Cancioneiro”

As mulheres secas

As mulheres secas
não se banham,
só lavam suas caras sujas nas águas dos olhos,
é pra isso que choram, se entristecem e choram.
E quando a noite desanoitece
e o sol vem queimar o mundo,
é hora de rezar as velhas preces
é hora de rezar em vão, de juntar mais mágoas
que é para se entristecer e dar mais águas
nos olhos que são cacimbas de beber.
As mulheres secas bebem lágrimas!
tentando fazer leite nas muchibas magras, ocas
e não vem leite que dê pra tantas bocas,
dos meninos magros, secos
que só sugam nesses peitos, suor e sal.
As mães secas vivem de encantar meninos,
são enganadoras e prometem o céu que não têm
o leite que não vem,a chuva, o mingau.
As mulheres secas, pra enganar, dão até de sorrir
e escondem deles as suas dores, seus cansaços
e chupando seus peitos secos, embalados em seus braços,
mais um menino morre, sem ela nem sentir.

(Texto Joilson Kariri e desenho de José Pádua)

domingo, 30 de julho de 2017

Nacional de Pombal vence a Seleção de Malta em jogo treino.


A fraca equipe da cidade de Malta-PB foi goleada por 6 x 0 pelo Nacional de Pombal, na tarde de ontem. 


O jogo, na verdade, se transformou num treino ante a fragilidade da Seleção do adversário.


O Camaleão do Sertão enfrentará no próximo dia 06 de agosto o Nacional de Patos-PB, jogo válido pelo Campeonato Paraibano da 2ª Divisão. 
Uma mulher foi presa em Tóquio por ter invadido a oficina de seu ex-marido — um luthier — e quebrado 54 violinos, no valor de mais de US$ 1 milhão. O processo de divórcio do casal já dura 3 anos. Ela é Midori Kawamiya, 34. A identidade do luthier foi preservada. Ele é descrito como um norueguês de 64 anos.

Não sei o que ele terá feito para ela reagir assim, mas sinto pelos violinos. Auxiliei a Elena na compra de um instrumento. Soube que tenho bom ouvido, ouvia de perto, de longe, avaliava a sonoridade de acordo com os 50 anos de consumo música erudita que tenho nas costas. Falava sobre o som mais moderno, mais barroco, etc.

Ela diz que fui fundamental. Espero ter sido porque acabei desenvolvendo amor pelos instrumentos comprados e pela profissão de luthier. É preciso enorme paciência para aguentar as manias de gente que ouve zumbidinhos e desconfia de que o seu som não chega até a esquina. Além de emitirem opiniões incríveis sobre graves e agudos.

Então, considerando que o cara é um luthier, sei que ele deve ter colado com cuidado milhares de peças, arrumado a posição de 50 mil almas, trocado 100 mil cordas e crinas, e suportado as manias de muitos violinistas.

E aí vem a mulher e quebra tudo.

A notícia é incompleta. O que teria feito o luthier para ela reagir assim? Dependendo, até viro de lado.

A melodia poética

(soneto de Rainer Maria Rilke)
 
A poesia tem uma dimensão melódica que a aproxima da fala humana.  Não da fala solta e desatenta dos instantes banais, mas de uma fala transfigurada.  Uma fala que nasce também dos ritmos de nossa voz, mas da voz que usamos nos momentos mais carregados de urgência, de emotividade, de concentração.

Comentando a amizade literária entre o poeta norte-americano Robert Frost e o crítico britânico Edward Thomas, Matthew Hollis observou:

Para esses dois homens [Frost e Thomas], a máquina que move a poesia não é a rima nem sequer a forma, mas o ritmo, e o órgão pelo qual ela se comunica é o ouvido que escuta, mais do que o olho que lê.  Para Thomas e Frost isso acarretava uma fidelidade mais à frase do que à contagem métrica, aos ritmos da fala mais do que às convenções poéticas; uma fidelidade àquilo que Frost chamava de “cadência”.  Se você já ouviu pessoas conversando por trás de portas fechadas, raciocinava Frost, você já deve ter reparado que é possível entender o sentido geral de uma conversação mesmo quando as palavras propriamente ditas são indistintas. Isto é porque as entonações e as sentenças com que falamos estão carregadas de sentido, formando um “significado sonoro”.  É sobre esse significado, desencadeado pelo ritmo da voz que fala, que a poesia se comunica de maneira mais profunda.  Thomas escreveu certa vez: “Um homem não pode escrever melhor do que ele fala quando alguma coisa o emocionou profundamente”.

Acho que tudo isto deve ser considerado a sério quando falamos que a poesia tem influência oral, da fala, etc.  Muita gente pensa que isto indica apenas que a poesia deve ser sempre coloquial, informal, descontraída, parecida com o modo desconexo e descuidado como falamos.  Não é bem isso, ou melhor, não é somente isso.  A poesia deve se aproximar da fala em todos os registros da fala; em todas as maneiras com que somos capazes inclusive de imprimir à fala (entre outras coisas) gravidade, tensão, emotividade, arrebatamento. 

Como se tivéssemos um telefonema de quinze segundos para comunicar algo muito importante a alguém, mas em compensação pudéssemos preparar e ensaiar o que dizer nesses 15 segundos durante o tempo que fosse necessário.

A fala tem seu encantamento próprio; a mera vibração da voz humana é carregada de sentido, e nos permite entender o que é dito mesmo quando, por trás de portas fechadas, não percebemos as palavras, mas entendemos a urgência indicada por aquela tensão. 

Num país estrangeiro, somos muitas vezes envolvidos em situações em que pessoas estranhas se exprimem num idioma que desconhecemos. E conseguimos perceber muito do que está sendo dito, porque existem naquelas vozes as correntes subterrâneas de emoção que independem de idioma. E não me refiro a recursos como mímica ou expressão facial; basta um telefonema. Basta ouvir rádio numa língua desconhecida.

Basta ouvir um recital de poesia em japonês, como já me aconteceu. Entendemos aquilo? Não. Mas respondemos emocionalmente àqueles sons. O isomorfismo emocional entre voz e ouvido faz com que aquela vibração sonora desperte em nós estados de espírito próximos do que a produziu. A melancolia desperta a melancolia, a raiva desperta a raiva, o medo o medo.

Ouvindo pessoas que falam numa língua desconhecida, não é o sentido dicionarizado de suas palavras que percebemos, é a urgência tonal e rítmica da voz, suas ênfases, suas pausas, a dinâmica que a faz subir e baixar de volume. Tudo isto produz a emoção melódica com que a voz humana nunca deixa de nos atingir.

T. S. Eliot dizia:

A poesia não deve derivar para muito longe da nossa linguagem ordinária, cotidiana, a que usamos e que ouvimos.  Que seja ela acentual ou silábica, rimada ou sem rimas, formal ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com as formas mutáveis do discurso coloquial. (...)  Cada revolução na poesia acaba resultando, e muitas vezes assim se proclama, num retorno à fala comum.

Existe uma espécie de cordão umbilical ligando a poesia discursiva à fala. Isto talvez explique a tensão em duas fronteiras conflagradas que a poesia mantém com outras formas de expressão.

A primeira é a fronteira entre a poesia discursiva e a poesia visual. É um cabo-de-guerra entre o ouvido e o olho. Principalmente depois da invenção da imprensa brotaram movimentos explorando o lado gráfico da poesia, muitas vezes em detrimento de seu lado discursivo.  São os caligramas da poesia barroca ou dos vanguardistas do século 19 como Apollinaire; são os poemas concretos e o poema processo do século 20, todas as experiências em que a forma visível das letras e das palavras e das frases se sobrepõe a sua carga original de significado.  Quando isto acontece, o leitor de poesia formado pela poesia discursiva sente-se pouco à vontade, porque enxerga naquilo uma perda da melodia poética, um afastamento da voz e do ouvido.  São poemas que é praticamente impossível (ou inútil) ler em voz alta para alguém que não os vê. Quando a poesia começa a ser feita para a página e para o olho, afasta-se desse murmúrio de vozes humanas que lhe deu origem.

A outra fronteira belicosa é a que a poesia mantém com a canção, com a letra de música. No caso da canção, o leitor volta a pressentir uma perda da melodia original da fala, só que desta vez pela interferência de uma melodia externa, invasiva, uma melodia autoritária que quer se afirmar como única leitura melódica possível. 

Por mais que a melodia de uma canção se aproxime das melodias espontâneas de nossa fala, ela será sempre uma melodia formalizada e especificamente musical, e dessa forma é como se obrigasse a fala a uma sujeição pouco confortável.  Como se a melodia da fala, tão livre e não-planejada, tivesse que ceder lugar a uma melodia mais deliberada, mais poderosa, uma melodia de natureza estrangeira à fala.

Percebemos isso quando lembramos de verbos tão próximos quando cantar e cantarolar. Cantar pressupõe uma intenção clara, um esforço, uma técnica, mesmo uma técnica amadorística. A pessoa que canta está fazendo um esforço consciente para se aproximar daquela melodia formalizada que a canção traz em si. Já a pessoa que cantarola está mais perto da fala. Cantarolar é repetir a canção de um maneira mais leve, descontraidamente imperfeita, sem compromisso, meio que fugindo a essa melodia pronta que a canção traz consigo. Cantarolar é tentar ir de volta para a melodia da fala, a melodia de quem está dizendo alguma coisa com uma certa musicalidade, mas sem se preocupar em obedecer demais à música extra-fala que vem colada à canção.

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

(um versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa (ed. Segmento, São Paulo, # 73, novembro de 2011)
Nas mulheres jovens, a beleza supre o espírito. Nas velhas, o espírito supre a beleza.

Barão de Montesquieu

Tão Linda e Serena e Bela

Tão lenta e serena e bela e majestosa
vai passando a vaca
Que, se fora na manhã dos tempos, de rosas a coroaria
A vaca natural e simples como a primeira canção
A vaca, se cantasse,
Que cantaria?
Nada de óperas, que ela não é dessas, não!
Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,
Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!
Cantaria o cheiro dos trevos machucados.
Ou, quando muito,
A longa, misteriosa vibração dos alambrados...
Mas nada de superaviões, tratores, êmbolos
E outros truques mecânicos!



Mário Quintana 
Fonte:  aqui

Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.


Manoel de Barros 
Todas as paixões nos levam a cometer erros, mas o amor faz-nos cometer os mais ridículos.

Frase

Não espere por uma crise para descobrir o que é importante em sua vida.

Platão

Versículos do dia

Com o silêncio fiquei mudo; calava-me mesmo acerca do bem, e a minha dor se agravou. Salmos 39:2

De uma mesma boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não convém que isto se faça assim. Tiago 3:10

Carla Bruni - ex-primeira dama francesa


Curiosidade


sábado, 29 de julho de 2017

Perguntem ao zelador

José Afonso Pinheiro, 47 anos, zelador, foi demitido de sua função no edifício Solaris, porque prestou depoimento ao Ministério Público relatando ser do conhecimento geral que o triplex 164-A era de propriedade de Lula.

É apenas um pequeno drama de um desempregado a mais, num total de 14% de brasileiros desempregados. Ninguém se preocupa com ele. A diferença é que José Afonso não foi demitido pela crise econômica e sim porque procurou colaborar com uma investigação criminal, cumprindo um dever cívico a que muitos se esquivariam.

Enquanto isso, a esquerda artística do país, doente de uma cegueira patológica, como é o caso de Chico Buarque de Holanda ou Caetano Veloso, ou então, órfã dos empréstimos a fundo perdido da Lei Rouanet, tão facilmente distribuídos pelo governo lulista, já se agita contra a condenação de Lula e os ideólogos profissionais do partido, bem remunerados, manipulam seu público.

A verdade é que a sentença de Sergio Moro é um primor de objetividade e clareza. É preciso lê-la. A conclusão está amparada com solidez em todos os argumentos que foram considerados. Não se pode lutar contra os fatos, mas para a visão distorcida dos lulistas, apenas a confissão dele serviria como prova, e mesmo assim, exigiriam o perdão judicial pelo bem que fez ao Brasil… Os fatos, esses são irrelevantes.

Essa gritaria só mostra o grau de nossa incivilidade. Mais de 13 anos de aparelhamento do Estado produziram um grande estrago. Toda uma geração foi afetada pela retórica que recobria esse assalto às instituições. O resultado foi esse fascismo de esquerda, a hostilização da Justiça que pune corruptos, a Justiça passa a ser o inimigo. Sempre há um inimigo no populismo. Não haverá tréguas à Justiça, embora todo lulista assaltado na rua queira a cabeça do ladrão.

O advogado de Lula, agora, perdeu completamente o pudor. Ofende publicamente o juiz, sente-se coberto ele próprio pela impunidade que o prestígio político de seu cliente lhe dá. É um sobrevivente da advocacia sem ética. Quer buscar justiça na ONU, mas a opinião pública internacional sabe muito bem do que trata a Operação Lava-Jato e sabe a posição de Lula nesse contexto. Pode falar em lawfare à vontade, porque os investidores americanos sentiram na pele os efeitos do Petrolão e sabem quem governava o país na época. Essa retórica não engana mais ninguém.

Lula faz parte da história do Brasil. Depois de morto e à medida que a História se afastar das paixões, será lembrado como um corrupto populista, como alguém que elevou a corrupção ao modelo político de gestão de Estado, em proporções nunca vistas na história da humanidade.

É com isso que ele deveria estar preocupado, com o seu julgamento póstumo e não com essa atitude farsesca de inocência. Por causa dele, um brasileiro simples e pai de família, perdeu o emprego.

Todo o meu respeito a José Afonso Pinheiro.
 
Hélio David Vieira Figueira, Juiz de Direito
Outro dia me pus a pensar que sou semelhante
às mulheres da literatura de Érico Veríssimo,
as mesmas que enquanto os homens ocupavam da guerra,
elas se ocupavam do tempo e do vento.
Eu não tenho muitas definições a meu respeito;
apenas respeito a dor de cada hora,
a esperança de cada momento.
E se isso me define, então sou a dor que sabe esperar.
(...) Enquanto houver vida, as possibilidades existirão.
Cada um se ocupa do que pode.
Eu ainda me ocupo das mesmas esperanças que
as Mulheres de Atenas(...)

Padre Fábio de Melo

O culpado é sempre o carbono ou o mordomo

Nas histórias policiais é o mordomo sempre o culpado. Uma leitora assídua escreveu me sobre a crônica: "Papel carbono", dias atrás, contando que um marido escrevia cartas de amor para a amante, com cópias em papel carbono. Certo dia a esposa descobriu as cópias escondidas. Mais uma vez o carbono foi o culpado. Amante descuidado. "... esse foi o princípio da decadência de um homem acima de qualquer suspeita".

Eduardo P. Lunardelli 

A vida é sonho

É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver é só sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
Vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.  


Calderón de la Barca

As novas notas de dez libras no Reino Unido: sai Charles Darwin e entra Jane Austen

As atuais notas de 10 pounds são assim:


 As futuras terão Jane Austen no verso. Nada contra o enorme Charles Darwin, claro.


Abaixo da imagem dela, uma pequena frase sobre o ato da leitura.


Milton Ribeiro 

Como descobri que não sou fã de nada

Não foi propriamente assim que aconteceu. Estou apenas traçando uma versão mais aerodinâmica, para simplificar o relato.

Eu estava num evento ligado a Bob Dylan, abertura de uma exposição em São Paulo dedicada ao bardo de Minnesotta. Teve DJ, teve som ao vivo, teve um coquetel. Eu conversava numa roda de conhecidos, e de repente me vi diante de uma moça simpática, jovem, que falava de um jeito que eu achei bem interessante. O diálogo era a respeito de alguma outra coisa, mas a certa altura ela perguntou:

– E você, é fã de Dylan?

– Claro – eu respondi.

– Diga sua música preferida. Não!... Ninguém tem uma só, todo mundo tem muitas. – Eu já achei inteligente essa ressalva, e me animei todo. – Diga uma que você gosta.

Puxei de uma cartola qualquer um coelho aleatório.

– “Desolation Row”.

Os olhos dela se iluminaram.

– Que maravilha! Eu também. Deixe ver... você gosta mais das versões antigas tipo Royal Albert Hall e Dublin, ou das mais recentes, tipo Locarno, Oslo...?

Comigo não tem tempo ruim, de modo que eu dei um gole da bebida e respondi, na cara de pau:

– Eu acho que eu gosto da versão original, do disco.

Ela me olhou com um misto de dó, magnanimidade e irrisão. E disse:

– Ah. Então você não é um fã. Você é um ouvinte casual.

O país das artes é vizinho do país das religiões, e o trânsito através de suas fronteiras, em ambas as direções, é intenso. Às vezes a gente pensa que está num deles, e quando vê, todo mundo em volta está falando o idioma do outro.

O fã não é alguém que se limita a gostar, é alguém que desenvolve um culto voraz. Camões dizia, erradamente ao meu ver, que “transforma-se o amador na coisa amada”. Eu acho que o amador, e o fã nada mais é que isto, transforma o mundo na coisa amada. Pra onde ele se vira, só enxerga aquilo.

O fã transforma a coisa amada num labirinto fractal onde cada detalhe se subdivide e se supermultiplica em um milhão de outros. Não basta ser fã de (vá lá) Camões. É preciso rastrear todas as versões que o soneto de Jacó e Labão já teve, é preciso saber na ponta da língua todos os endereços onde o poeta pendurou seu casaco, é preciso colecionar memorabilia, é preciso ter uma coleção de perguntas de algibeira para dinamitar as pretensões dos incautos.

Lembro do saudoso crítico de cinema André Setaro, de Salvador, meu parceiro etílico e meu contemporâneo, que assinava críticas na Tribuna da Bahia quando eu fazia o mesmo, com mais rapidez e menos perspicácia, no Correio da Bahia.

Um dia entro eu num daqueles velhos cinemas nos arredores do Pelourinho para assistir, se não me engano, Trama Macabra, o derradeiro filme de Hitchcock, quando esbarro com Setaro. Cruzei a cortina e encontrei-o de pé, junto àquele tradicional balcão de metro e meio de altura que protegia a fila mais afastada da tela. Conversamos ali enquanto iam sendo exibidos o Canal 100 e os trailers. Quando surgiu a ponteira indicativa do filme, falei:

– É o filme agora. Bora sentar?

Ele me olhou com cara de fã ofendido e disse apenas:

– Filme de Hitchcock assiste-se de pé, em sinal de respeito.

E fê-lo. Talvez só o tenha feito porque sentei poucas filas à frente e o fiquei vigiando com o rabo do olho, e ele então não teve outro jeito senão manter a pose; mas fê-lo, ora que diabo.

O fã se confunde muitas vezes com o colecionador, porque uma coisa conduz à outra com a mesma fluidez com que ser noivo conduz a ser marido. O colecionador é um cara que casou com uma missão, e muitas vezes essa missão nem é um ser específico, com cara na foto e nome no cartório; é um mero conceito abstrato.

Meu pai tinha um amigo que colecionava qualquer exemplar de qualquer periódico, desde que fosse o “ano 1, número 1”. De tudo que saía em Campina, Seu Nilo comprava um exemplar e remetia para esse cidadão, cujo nome minha incúria não guardou para a posteridade. E se considerarmos o índice de mortalidade infantil das publicações brasileiras, as literárias em especial, penso nas raridades valiosíssimas que ele terá amealhado no correr das décadas.

Porque existe um mercado subterrâneo para alimentar o fã-colecionador. Algum tempo atrás eu estava bebendo no Amarelinho da Cinelândia, numa mesa grande onde havia um ou dois amigos e outros caras que conheci na hora. Passou uma garota lindinha, meio hippie, distribuindo filipetas de shows de rock que ia haver no Teatro Odisséia e no Circo Voador. Um cara ao meu lado chamou a garota e pediu uma filipeta de cada e pôs na mesa, junto do pacotinho de amendoim. Estranhei um pouco porque o cara tinha jeitão de quem gosta de ver shows de Dona Ivone Lara, não do Macaco Bong.

– Você vai ver esses shows? – perguntei.

Ele deu um gole do chope, leu com atenção todas as filipetas, e guardou no bolso da jaqueta, enquanto respondia:

– Eu não vejo os shows, eu coleciono isso.

– Você é fã de rock?

– Eu mesmo não – disse. – Mas conheço fã de rock. No ano passado eu vendi uma filipeta dessa, do primeiro show dos Paralamas do Sucesso, por cinco mil reais.

Como disse um economista amador, demanda gera oferta e oferta gera demanda. Um rabisco a carvão feito por Van Gogh, cujo valor estético roça o zero, é vendido por milhões de dólares para um fã que vai... expô-lo no Metropolitan? Não, trancá-lo num cofre, junto com a certeza de possuí-lo.

Diante disso, nós, “ouvintes casuais” (não, não esqueci, moça, continua encravado, e doendo) temos apenas que nos recolher à carapaça da nossa ignorância e prosseguir rastejando no chão desse oceano de possibilidades. Por mais que a gente pense que ama Luís Buñuel ou The Incredible String Band ou Ellery Queen sempre vai aparecer à nossa frente um indivíduo blasé perguntando se a gente sabe a marca de talharim que o ídolo preferia.

Um rapaz estava numa festa na mansão da família de um amigo de faculdade. Lá pelas tantas, começou a conversar com a avó do amigo, uma senhora setentona, simpática, boa de papo. Depois de alguns minutos, a senhora suspirou e disse:

– Mas o que é isso, o senhor tão jovem, a festa cheia de gente jovem, e eu aqui lhe incomodando... Vá circular, se divertir.

– Qual nada – acudiu ele de imediato. – Estou gostando muito de conversar com a senhora.

– Ninguém da família conversa comigo – confidenciou ela. – Eles dizem que eu sou doida.

– Não é possível. A senhora, tão lúcida, tão inteligente. Por que eles dizem isso?

– Porque eu gosto muito de pão-de-ló.

O moço se surpreendeu:

– Pão-de-ló? Mas isso não tem nada de mais. Eu também adoro pão-de-ló.

Os olhos da madame chamejaram e ela cravou no braço dele cinco dedos de ferro:

– Então vamos lá em cima no meu quarto. Eu tenho vinte e cinco malas cheias de pão-de-ló.

Ela era uma fã.

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
"No dia que for possível à mulher amar em sua força e não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para se encontrar, não para se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal".

Simone de Beauvoir
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro, 1967.

Carta aberta dos Pediatras para o Ministro da Saúde, Ricardo Barros

Exmo. Senhor Ministro Ricardo Barros,

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), entidade que representa 35 mil pediatras que atuam no País, cerca de 70% no atendimento de crianças e adolescentes na rede pública, tem ciência dos meandros políticos de sua indicação para ocupar o cargo do mais alto escalão na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e, continuamente, tem colocado especialistas à disposição do Governo Federal na tentativa de encontrar respostas para os históricos problemas que afetam o SUS, em todos os níveis de complexidade.

Esse é o compromisso que guia a SBP, independentemente de questões políticas ou ideológicas: contribuir para a melhoria da oferta do atendimento em saúde para a população. Contudo, é impossível para nós, pediatras, ficarmos calados diante de afrontas propositais, resultado de comentários e insinuações que nem de longe refletem a realidade da assistência no País.

A pediatria brasileira expressa, assim, sua profunda indignação com essa estratégia clara de promover polêmicas e lançar sobre os ombros dos médicos a responsabilidade pelas falhas da gestão do SUS, nas esferas federal, estadual e municipal. Contudo, ao contrário de frases de cunho pejorativo, os dados do próprio Ministério da Saúde comprovam a impertinência da generalização infundada. 

Senhor Ministro, os médicos brasileiros, em particular os pediatras, “não fingem trabalhar”, conforme sua declaração pública. Eles trabalham, sim, e muito. Em 2016, foram realizadas mais de 43 milhões de consultas pediátricas, ou seja, cada pediatra que atua na rede pública respondeu, em média, por 1,8 mil atendimentos no período. No ano passado, o SUS também contabilizou quase 1,9 milhão de partos (normais e cesáreos), sendo a grande maioria deles acompanhados diretamente por pediatras. 

A pediatria – e todas as suas áreas de atuação – está presente nas diferentes fases do atendimento de crianças e adolescentes, com ênfase na atenção básica. Historicamente, tem participado dos grandes programas nacionais, tais como campanhas de imunização, de nutrição, entre outros. Tal comprometimento é responsável pela significativa melhora dos indicadores de saúde.

Senhor Ministro, não se pode responsabilizar os médicos pela falta de infraestrutura nos postos de saúde e nos hospitais; pelo desabastecimento de insumos e medicamentos; pela dificuldade de acesso a exames, de forma particular aos de média e alta complexidade; pelo déficit de 10 mil leitos de internação pediátrica, fechados entre 2010 e 2016. 

O SUS está doente e queremos sua recuperação. Lutamos para mantê-lo vivo e ativo todos os dias e não aceitamos que transformem essa agonia numa pauta de interesse político. Continuaremos a fazer nossa parte. Nós, pediatras e demais médicos, manteremos nosso trabalho porque os pacientes precisam de nós. 

Contudo, Senhor Ministro, basta de provocações. Exigimos valorização e respeito pelo nosso compromisso permanente com a saúde, o qual não se pauta por interesses outros que não a vida e o bem-estar de milhões de brasileiros.  


Rio de Janeiro, 17 de julho de 2017.

 

Há 83 anos morria o patriarca do Juazeiro

Cícero fez sua viagem derradeira. Foi inicialmente publicado no jornal "O Semeador" e depois tomou outros órgãos de imprensa e também a literatura, como um dos melhores livros sobre o religioso, "Padre Cícero" de Lira Neto. Diz o texto:
O texto a seguir, uma carta do caixeiro viajante LOURIVAL MARQUES, que estava da "Meca Sertaneja" no dia em que Padre

Acordei pelo tropel de gente que corria pela rua. Fiquei sem saber a que atribuir aquelas carreiras insólitas. Quando cheguei à janela tive a impressão de que alguma coisa monstruosa sucedia na cidade. Que espetáculo horroroso, esse de milhares de pessoas alucinadas, correndo pelas ruas afora, chorando, gritando, arrepelando-se... Foi então que se soube... O Padre Cícero falecera... Eu, sem ser fanático, senti uma vontade louca de chorar, de sair aos gritos, como toda aquela gente, em direção à casa desse homem, que não teve igual em bondade e nem teve igual em ser caluniado.

Um caudal de mais de 40 mil pessoas atropelava-se, esmagava-se na ânsia de chegar à casa do reverendo. O telégrafo transbordava de pessoas com telegramas para expedição, destinados a todas as cidades do Brasil. Para fazer idéia, é bastante dizer que só em telegramas, calcula-se ter gasto alguns contos de réis. Logo que os telegramas mais próximos chegaram ao destino, uma verdadeira romaria de dezenas de caminhões superlotados, milhares e milhares de pessoas a pé, marcharam para aqui. “Joaseiro” viveu e está vivendo horas que nem Londres, nem Nova Iorque viverão jamais... O povo, uma onda enorme, invadiu tudo, derrubando quem se interpôs de permeio, quebrando portas, passando por cima de tudo. Pediu-se reforço à polícia, mas o delegado recusou, alegando que o Padre era do povo e continuava a ser do povo.

Arranjaram, no entanto, um meio de colocar o cadáver exposto na janela, a uma altura que ninguém pudesse alcançar e, durante todo o dia, várias pessoas encarregaram-se de tocar com galhos de mato, rosários, medalhas e outros objetos religiosos, no corpo, a fim de serem guardados como relíquias. Milhares de pessoas continuavam a chegar de todos os pontos, a pé, a cavalo, de automóvel, caminhão, de todas as formas possíveis.

Quatro horas da tarde... Surge no céu o primeiro avião do exército. Depois outro. Lançam-se de ponta para baixo, em voos arriscadíssimos, passando a dois metros do telhado da casa do Padre Velho. Duram muito tempo os voos. É a homenagem sentida que os aviadores prestam ao grande vulto brasileiro que cai... Desceram depois no nosso campo, vindo pessoalmente trazer uma riquíssima coroa, em nome da aviação militar.

A cidade é uma colméia imensa; colméia de 60 mil almas, aumentada por mais de 20 mil, que chegaram de fora. Nenhuma casa de comércio, de gênero algum, barbearias, cafés, bares, nada abriu. A Prefeitura decretou luto oficial por três dias. O mesmo imitaram as cidades do Crato, Barbalha e outras. Todas as sociedades e sindicatos têm o pavilhão nacional hasteado a meio-pau com uma faixa negra, em funeral.


Foi mantida a grafia original do texto


Que são os homens mais que aparências de teatro? A vaidade e a fortuna governam a farsa desta vida. Ninguém escolhe o seu papel, cada um recebe o que lhe dão, aquele que sai sem fausto nem cortejo e que logo no rosto indica que é sujeito a dor, a aflição, a miséria, este é o que representa o papel de homem.  A morte, que estar de sentinela, numa das mãos segura o relógio do tempo, na outra, a foice fatal, e com esta, de um só golpe, certeiro e inevitável, dar fim a tragédia, fecha a cortina e desaparece.”

*Matias Aires, maior filósofo da língua portuguesa do Séc. XVIII 

Matias Aires Ramos da Silva de Eça (em grafia antiga, Mathias Ayres Ramos da Silva d'Eça) (São Paulo, 27 de março de 1705 — Lisboa 10 de dezembro de 1763) foi um filósofo e escritor de nacionalidade portuguesa nascido no Brasil colônia.