O problema com essas histórias todas é que é tudo offzirrécorde, como se diz
atualmente. Quer dizer, quem diz não escreve e quem escreve não assina. Não tolero
isso. Pode estar muito na moda, mas não me convence. Eu, você pode escrever aí: foi eu
que disse. O resto de quem sabe, não querendo confirmar, não confirme. Escreva aí, sem
o offzirrécorde. O camarada tem medo de dizerem que ele é colhudeiro, a verdade é o sol
e ele é a lua, essas coisas. Comigo não, escreva. O diabo Beremoalbo, muitas pessoas
estiveram pessoalmente com ele - posso citar diversas, aliás não cito nada, hoje em dia
o sujeito cita e, quando está bem do seu, já virou alcagüete, pode deixar - o diabo
Beremoalbo era um diabão altamente escroto, dos piores que já apareceram por aqui,
inclusive fazia as desgraças dele e dava grandes gaitadas, espécie de
curriúque-curriúque, só que com aquele bafo de diabo, absolutamente diferentíssimo.
Ele chegava na porta das pessoas explodindo fortemente as letras que movimentam os
beiços:
— Boa noite. Meu nome é Beremoalbo.
E aí podia se resignar, que seguia uma escrotidão em cima da outra, encarreirado. Leite
azedando, mulher abortando, menino de caganeira, boi de bicheira, água podre no purrão,
panarício no dedão, moça velha desonrada, casa nova destelhada, tudo o que possa lhe
ocorrer. O bicho tinha uma voz péssima, mestiça de gruta, uma coisa horrível de se
ouvir assim no meio da noite — meu nome é Beremoalbo —, imagine o senhor.
Pessoas há que procuram achar qualidades nesse diabo Beremoalbo, mas a verdade precisa
ser dita, porque não existe coisa ruim neste mundo que não apareça algum descarado para
elogiar: nesse Beremoalbo não tem nada que se salve, não se pode ter a mínima
confiança nele. Para não dizer mais nada, recordo o dia em que seu Beremoalbo se nos
aparece por meio do serviço de alto-falantes. O que ele diz é o seguinte:
— Boa noite. Ao microfone, Beremoalbo. Votem no Medebê.
Agora o senhor veja que conselho porreta que ele achou de dar. Interessante. Com certeza
é a mãe dele, se diabo tivesse mãe, que vai ficar aqui aguardando quatro anos sem nem o
secretário da Justiça, que é o mais esculhambado de todos, aparecer por aqui, mordamos
aqui para vermos se sairmos leite, ora me deixe. Acredito ser isto suficiente para saber
de quem se trata Beremoalbo.
Entretanto, Beremoalbo está longe de ser o único da raça do cão a freqüentar por
aqui, aliás, é exatamente de um caso desses que eu quero tratar, mais tarde lhe falo,
logo, logo. Tem gente que nega, mas, quando o senhor virar as costas, vão se benzer e
espalhar alho pelos cantos da casa, só que Beremoalbo come alho, com ele o negócio é
difícil. Tem gente que nega, mas só de fingimento, pois a verdade é que esse pessoal
todo vai se lembrar se o senhor chegar para eles e mencionar alguns dos seguintes cães:
Balganoel, o espalha-merda; Virifinário, o que conseguiu fazer aparecer mais cornos nesta
terra do que se pode contar; o diabão Jugurta, que convencia todo mundo a dizer a verdade
e assim causou toda apresentação de fatos maus que a gente seria feliz se não soubesse;
Harpagelão, que meteu na cabeça de diversos padres de ir na terra de uns índios mais do
que degenerados, os quais comeram Roquiféler - uns índios que comeram Roquiféler, vai
se brincar com um povo desses? - e igualmente que os índios comeram os padres e nem
pensaram duas vezes, que quando índio pensa meia vez pensa muito; Rolvinésio, o que
botava para falar e, botando gente para falar, causou grande número de misérias;
Erundino, que peidava nos ambientes e provocava inimizades; Raimundo Humberto, dador de
bofetadas estraladas, levantador de saias de mulheres, assoprador de ventos maus de toda
conseqüência, causador de dor de ouvidos, mandador de moscas na hora do sono, broxador
de amantes, atiçador de crianças insuportáveis e tudo mais que faça nós o Homem que
possamos dirigir blasfêmias ao Nosso Criador - mas esse Raimundo Humberto, o senhor tem
de concordar que um diabo chamado Raimundo Humberto nunca que pode ser a mesma coisa de um
diabo atendendo por Beremoalbo, então seu Raimundo Humberto se fazia passar, a quantos
coubesse a desgraça de topar com ele, por Ascaltenor, mas esse já é outro diabo, que
não atenta aqui.
Pode o senhor assim consultar a nossa praça e perceber o que quiser. Porque cada um
percebe o que quer, apesar de todo o offzirrécorde. Embora não perceber certas coisas
já pareça descaração, mas manda a caridade que se deixe isso de lado. Nunca me
esqueço de que uns americanos estiveram aqui e filmaram o povo todo - sem porém pagar um
tostão a ninguém, como eles pagam por exemplo a Tarzan, claro que ninguém aqui é
Tarzan, mas também é filhos de Deus - e, quando notaram que a maior parte só trabalha
quando está com fome, disseram que todo mundo aqui somos uma sociedade rica. E ainda
sustentaram e botaram na rádio. Quer dizer, quanto mais a gente estiver morando no oco
dos pés de pau e cagando nos matos, mais eles estão gostando. Americano é mais sabido
até do que paulista. Estamos de olho neles todos. O diabo Gildélio, conforme o senhor
sabe, do contrário não estava perguntando a respeito dele, era mais especial do que
esses outros, isto porque, de acordo com todas as testemunhas, trazia sempre franzido o
sobrolho e a cara ensombreada, por isso que não suportava ser diabo. Se bem que nessa eu
não creio assim cem por cento, porque cansei de ver ele sair da bodega de Ernestino com
cada lasca de jabá deste tamanho na mão, que ele roubava, provocando com isso
peixeiradas e tentativas de Ernestino contra qualquer pessoa que apresentasse cara de
haver comido jabá naqueles dias, notadamente jabá crua. Eu mesmo estive acusado
falsamente. Quer dizer, são umas coisas que fazem a pessoa alimentar certas dúvidas.
No entanto, de relação aos assovios, posso muitíssimo bem prestar depoimento, isto
porque todos nesta cidade sabem que um certo tipo de assovio, antes muito ouvido por aqui,
podia contar como uma espécie de aviso, porque lá vinha miséria. Acúrcio mesmo, depois
que ele já tinha metido no juízo de Acúrcio casar com Isabel Rosália e morar com a
mãe lá dela, dona Aurora, que só não se podia chamar de jararaca porque a jararaca tem
a natureza mais cortês. Por aí o senhor tira a natureza de dona Aurora. Pois Acúrcio
garante que, na hora do pedido de casamento, ele ouviu aquele assoviozinho como que de
curió, assim no pé do ouvido bem lá dele. A consciência cochichou: atenção nos
assobeios, que possa ser Gildélio. Mas aí é que está o particularismo da situação.
Na hora, o sujeito não dá importância ao assovio, de forma que a desgraça fica feita.
A mesma coisa pode ser dita dúzias e dúzias de vezes, como no caso de Genival, esse
mesmo que o senhor está pensando, que vem ouvindo esses assovios toda vez que se
candidata, desde vereador aqui até prefeito, deputado, vai a senador — quer dizer,
chegando em todas as alturas políticas, não tem quem salve ele do inferno. Como no caso
de Totonho, para mim ele continua a ser Totonho, lá fora é que chamam de doutor, doutor
para mim é ourinol, não vou chamar de doutor um moleque daquele, que eu vi o pai muitas
vezes passando cabresto em jegue alheio nos pastos, ora me deixe. O caso dele é que hoje,
de grau em grau, é dono de altos bancos e altíssimas fábricas e é empregador —
que ele chama empregador e não gosta que chamem de patrão, por causa do natural
acanhamento — de diversas pessoas, porém sempre ele ouvindo o assovio de Gildélio,
quanto mais dinheiro ele vai ganhando. Tem uns dinheiros de viúvas que ele também
arrecada e escreve numa caderneta e esses incrementam muitíssimo a assoviação. Deixe
ele.
Fala-se em Gildélio também, quando, por uma razão ou por outra, a pessoa se engana com
alguém e pega esse alguém com a boca na botija em alguma desgraceira contra si, isto
porque, segundo se diz, seu Gildélio me comete as piores safadezas por entre os disfarces
mais descarados e as mais altas finuras. O sujeito pega ele armando uma sacanagem e ele
faz o seguinte discurso:
— Creia, meu senhor, neste mundo é muito fácil condenar e ainda mais fácil
ignorar. O senhor me compreenda, eu sou diabo, é uma fatalidade, o que é que se pode
fazer? Alguém tem que ser diabo, havemos de convir. Vamos compreender. Não se condena
pela profissão, sem conhecer o caráter. Se eu fosse anjo, está certo. Mas eu não sou.
De forma que só posso fazer esse tipo de coisa, o senhor por fineza queira relevar. Posso
garantir que, se o senhor fosse diabo, estava na mesma situação, firuri-firuri.
Bom consolo, pode o senhor dizer e, de fato, nada disso ia impedir que a desgraceira fosse
feita. Pelo contrário, acho que nisso vai a demonstração de que Gildélio pode ser o
exemplo de todos os diabos, pois devia ser verdade conhecida que nenhum assovio ou até
apito de trem vai desviar o homem de seu mau destino. De maneira que podemos considerar
esses assovios na qualidade de deboche, mesmo porque a situação aqui é de molde que, se
o urubu de baixo está cagando no de cima, isso se descreve como boas notícias. É assim
que vemos as coisas pretas, Deus é grande. Aliás, podia chegar uma banda de assoviadores
que nada se alterava, pois desde que este mundo é mundo que existe um assoviador, sem que
ninguém devote a ele preocupação, porventura senão um maestro ou outro, para lhe
comunicar que o seu dó maior enganchou no si bemol.
Não sei de nada, até nem sou daqui e, mesmo que fosse, não estava aqui e, mesmo que
estivesse, não falava nada. Estou ficando nos paraxismos, a culpa é sua, que me deu
álcool. Estou sabendo apenas que esse diabo tanto atanazou a vida do meu compadre Tito
Procópio que esse compadre, ouvindo embora os assovios, fez mais filhos do que devia a
consciência consentir, pois afirmava Tito Procópio que o filho era a riqueza do pobre,
convencimento este assoprado pelo Gildélio mencionado. Sendo que Gildélio, que tinha se
provado amigo da família, tudo bem disfarçadinho, mostrou que não ter filhos ia ser bem
pior. Além de ser maldição, exibia aos vizinhos gala fraca ou mulher maninha e, mais do
que importante, podia ser - estou dizendo assim: sempre podia ser, às vezes possa ser
até que não podia ser, que eu não sou comunista - podia ser que, sem mais gente para
ajudar na produção, podia ser que eles não pudessem mais ficar ali, naquelas terras que
não eram deles. Considerado isso, lembre que tanto faz nascer como não nascer, que a
comida não aumenta, mas a produção pode aumentar. E tal e coisa. E só os assovios.
Pois então Tito Procópio foi tendo filhos, juntamente com despesas de enterros diversos,
muito embora tenha feito muitos que viviam ali mesmo, comendo o barrinho deles e
esfregando as barriguinhas d'água deles e dois ou três quem sabe se não pode vir a ser
até peão, se forte?
Terminou, naturalmente, que Tito Procópio desmascarou Gildélio e se preparou para
envergonhar esse diabo, quando ele então começou com a história de que culpa ele tinha
se ele era diabo. Mas logo eu, disse Tito Procópio, logo eu, que sou pobre e nada possuo
nesse mundo? Podendo vosmecê ir infernar quem por aí explora e torpedeia?
É por isso mesmo, disse o diabo Gildélio, olhando para os meninos amarelos com seus
olhos maus e dando um sorriso horrível como só o diabo pode dar, o sorriso mais feio do
mundo. E ele sorri porque sabe que não pode obrar coisa pior do que fazer nascer. Pelo
menos nascer por aqui.
João Ubaldo Ribeiro
Texto extraído do "Livro de Histórias", Editora Nova Fronteira –
Rio de Janeiro, 1981, pág. 115.