domingo, 23 de setembro de 2018

O grande Tertiano

É um conto antigo do grande Anthony Boucher, escritor de romances policiais e de ficção científica, crítico, editor e, incidentalmente, o homem que fez a primeira tradução e publicação de Jorge Luís Borges nos EUA. “The Greatest Tertian” (1952) é um conto em forma de artigo acadêmico de um pesquisador de uma civilização alienígena do futuro, estudando as lendas longínquas do distante planeta Terra. Nesse futuro, a história da Terra se diluiu em lendas confusas e somente dois terrestres (=tertianos) ainda são lembrados. O primeiro, conhecido como Shark Oms, era um detetive de rara inteligência, que desvendava os crimes mais complicados. O segundo, chamado Shark Sper, era um dramaturgo e poeta que escreveu as maiores comédias e tragédias do teatro de seu tempo.

O lance de ousadia acadêmica do autor do artigo consiste num raciocínio indiscutível. Ele aponta o fato de que essas duas figuras lendárias viveram na mesma cidade terrestre, chamada “Londres”, em datas, segundo os registros, muito próximas. Sabem-se centenas de episódios da vida do detetive Shark Oms, mas nenhum dos seus escritos sobreviveu. Por outro lado, preservou-se toda a obra do dramaturgo Shark Sper, mas quase nada de sabe sobre sua vida. Ora (pergunta o autor), isto não sugere que os dois são um único indivíduo? Esse indivíduo seria “o grande tertiano”, famoso pelas suas deduções brilhantes e pelos seus versos geniais.

O conto de Boucher ironiza as nossas tentativas de interpretar os farrapos de evidências que temos a respeito de civilizações desaparecidas. Pedaços de biografias, datas contraditórias, fatos cheios de lacunas, versões conflitantes que às vezes coincidem num ponto secundário, nomes que soam parecido e podem ser o mesmo. A idéia (um tanto borgiana, com um viés satírico) de considerar que Sherlock Holmes e Shakespeare foram a mesma pessoa não está muito longe dos estudos de hoje em dia tentando determinar a existência de um imaginário poeta chamado Homero que teria escrito a Ilíada e a Odisséia. Lembra também uma especulação de Carl Sagan (acho que no livro Cosmos) ao falar das tragédias de Ésquilo ou Sófocles, das quais só conhecemos um pequeno número. Diz Sagan que é como se uma civilização futura ouvisse falar em Shakespeare mas só tivesse preservado peças como Timon de Atenas, Bem está o que bem acaba, Coriolano, e tivesse vagas referências a textos perdidos com os títulos de Hamlet, Rei Lear ou Romeu e Julieta. A história é uma montagem de cacos e farrapos, feita, em partes iguais, de deduções como as de Sherlock Holmes e de uma imaginação criadora como a de Shakespeare. 

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

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