Participamos atualmente de um momento de muita tristeza e ressentimento no campo da educação. O cenário político é o da inibição, do medo e da impotência. Precisamos pensar nisso, buscar entender o que isso tem significado em nossas vidas enquanto somos professores, educadores, estudantes ou gestores em educação. Toda ética possível em educação depende de nossa capacidade de estarmos presentes como cidadãos nesse momento em que a violência física e simbólica vividas atingem de algum modo a todos nós dedicados à profissão de ensinar.
A tristeza é o que o poder tem provocado nos cidadãos. Sabemos que a tristeza é um afeto negativo. Aquele afeto que, segundo Spinoza, filósofo holandês do século 17, produz apatia e inibe a vontade de ser que é própria a todo o ser que vive. Spinoza sabia que os governos e os sacerdotes precisavam da tristeza de seus “súditos”. Hoje, podemos dizer que conhecemos a tristeza quando temos um mau encontro com as pessoas e as coisas com as quais nos deparamos na vida. Reconhecemos o mau encontro quando, em dada circunstância, temos vontade de fugir. Vontade de parar, de abandonar o barco… Quando algo nos acontece e queremos nos esconder debaixo do tapete…
Podemos dizer que o ressentimento tem tudo a ver com isso. O ressentimento é justamente o afeto que nasce da nossa impossibilidade de fugir, de encontrar o tapete onde enfiar o nariz sangrando nos embates do dia a dia. Nietzsche, filósofo alemão do século 19, viu no ressentimento um afeto negativo, que aprisiona e não liberta. Aquele afeto não resolvido comum a quem não consegue esquecer alguma coisa ruim que aconteceu, de algum mau encontro que permanece em nosso sentimento como uma torneira mal fechada. É o afeto típico daquele a quem chamamos de “mal resolvido”. Talvez porque não tenha conseguido fazer nenhum tipo de acordo com aquilo que o maltrata, mas isso só significa o quanto a coisa toda lhe pesa.
O que não conseguimos resolver só permanece atuando em nossa afetividade porque não soubemos esquecer e seguir vivendo justamente em nome da alegria de viver que nos trouxe até aqui. Sim, é a alegria de viver que nos faz viver. É o sentimento da vida simplesmente acontecendo que nos enche de vontade de viver, ou seja, que nos toma como alegria pura e simples. Difícil falar disso em uma sociedade em que a depressão parece epidemia, em que as pessoas só se alegram por meio de algum tipo de entorpecimento.
Mas assim como a tristeza não é ingênua, a alegria também não é. A alegria de que falamos filosoficamente não é a alegria boba, aquela alegria de plástico vendida pela publicidade; não é a alegria da indústria cultural que nos ilude de uma vida sem sofrimento, sem trabalho, com abundância de capital, cheia de riquezas materiais. Esta seria a alegria falsa, a alegria que o sistema nos promete para mascarar a sua própria pobreza espiritual. A alegria de que falamos é filosófica, no melhor sentido do termo. Ela diz respeito à capacidade de esquecer, de sair do ressentimento, de buscar outras formas de vida. A capacidade de agir na direção da emancipação em relação à barbárie pode ser sua tradução. O desejo de simplesmente estar no mundo também é uma forma de alegria. A alegria é sempre uma irrupção criativa contra a oferta de tristeza de um mundo de opressão e medo.
A alegria de sentir que existimos, de experimentar a vida como uma forma de potência geradora e auto-criativa é o contrário do entristecimento promovido pelo poder, pela violência, pela ordem econômica opressora que pretende apenas manter-se a si mesma como está e onde está. Desconsiderando, certamente, a existência humana que estamos aqui, neste mundo, para experimentar.
A educação deve ser uma prática de promoção de um certo modo de alegria, a alegria da emancipação. Ela é, portanto, a teoria-prática da liberdade que se baseia na lucidez que está para além de toda simples racionalização, pragmatismo ou utilitarismo. A educação é para o educador a vontade de trazer a alegria, de partilhar a alegria, de democratizar a alegria. A relação com o conhecimento é uma forma de alegria, a relação com o outro também. O conhecimento por sua vez se confunde com a educação enquanto campo de experiência: prática-teórica da vida ou teoria-prática da vida cuja razão é a alegria. Ora, a alegria é uma força revolcuionária.
Por isso, precisamos urgentemente nos perguntar: o que pode a educação? O que a educação tem significado em nossa época? Como vemos a educação? Como nos relacionamos com ela? Responder a estas perguntas pode parecer fácil para quem, atuando como professor, educador, reflete diariamente sobre sua própria prática. No entanto, mesmo que o profissional da educação saiba muito bem o que faz, o que nem sempre é verdade, sabemos que no nível da cultura, a educação é uma área muito desvalorizada. Estas perguntas são importantes, portanto, para qualquer cidadão. Também para aquele que não se pergunta sobre isso por que pensa que a educação não lhe diz respeito. No entanto, sabemos que a educação é para a vida toda. Que nos educamos todos os dias até o fim de nossas vidas.
A desvalorização da educação na esfera cultural, social e econômica, resulta em ignorância geral e em desconhecimento sobre o próprio sentido da educação em escala social. Essa desvalorização ajuda apenas a promover o entristecimento e o ressentimento que tem nos devorado a todos. Vivemos no círculo cínico de um sociedade antiética e antipolítica no qual a educação é vítima de todas as mentiras dos poderosos. A tarefa de cada educador é, hoje, tentar interrompê-lo.
Mas como conseguiremos isso se, no âmbito social, político e econômico, a educação é rebaixada à mercadoria? Como podemos tratar aquilo de mais precioso que temos em termos de transformação social, aquilo que dá significado à nossa existência como educadores, como uma mercadoria? A infelicidade que vemos hoje no campo da educação tem a ver com esse rebaixamento à mercadoria. E com a concomitante humilhação que professores e estudante, bem como cada escola, sofre sob as lides do sistema que produz este tipo de processo. Do mesmo modo, é como mercadoria que a família, que poderia aliar-se à educação, se serve dela. Para muitos pais, a escola é um investimento, para vários outros, nem sequer é isso. A desvalorização generalizada da educação na esfera da cultura pode vir a ser introjetada pelos próprios professores que, muitas vezes entristecidos com o rumo de sua profissão, se entregam ao “mais do mesmo”, ao conformismo e à apatia. Do mesmo modo que os estudantes que deveriam ser emancipados por meio da escola e da educação voltadas para a vida e a exuberância criativa que caracteriza o ser humano.
Contra esse estado de coisas, podemos voltar ao sentido mais profundo da educação enquanto teoria-prática em que está em jogo a nossa alegria de viver enquanto esta alegria de viver implica estar em contato com o outro. Conviver e ensinar a conviver é o exercício diário dos professores. E, neste sentido, a educação é sempre uma ética. Ética, pois por meio da educação aprendemos a respeitar o outro, a reconhecê-lo. Educação é o nosso caminho social e pessoal para a transformação do todo e de cada um. Transformação que é a própria ética que pode refazer desde dentro o cenário político aviltado de nosso tempo. Certamente a educação é o único caminho para sociedades inteiras e para nosso país em especial. Falta-nos, no entanto, projeto. Ou melhor, vontade política para que a educação realize sua potência mais íntima. No entanto, esta vontade política só pode nascer no âmbito de cada um no encontro com os outros com os quais fazemos “comunidade”.
Enquanto profissionais da educação, mas também enquanto cidadãos que desejam ser felizes por meio daquilo que fazem e vivem, podemos fazer das nossas práticas de educação, dentro e fora da sala de aula, o bom encontro que nos há de transformar. E não o mau encontro enganador que muitos desejam que a educação venha a ser. Uma educação contra o ressentimento, contra a tristeza, em nome do conhecimento, da liberdade de ser e estar, da arte, de nossa exuberância criativa, é isso o que desejamos e aquilo pelo que temos que lutar no cenário sombrio de nossa época.
Márcia Tiburi
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