Há dois Robertos sobre o palco. Um deles foi
à Justiça para arrancar das livrarias a biografia ‘Roberto Carlos em detalhes’,
sob censura há seis anos e meio. O outro diz ser “a favor” do projeto de lei que
autoriza a publicação de biografias não autorizadas. Juntos, esses dois
Robertos não fazem sentido.
O segundo Roberto é recentíssimo. Foi ao
ar no programa ‘Fantástico’,
na noite deste domingo. Para que ele fizesse nexo, o primeiro Roberto, conhecido
desde abril de 2007, teria que sair de cena. A entrevistadora Renata
Vasconcellos tentou abrir a porta de saída:
— Você permitiria a biografia
que foi feita a seu respeito há alguns anos?
Roberto, o primeiro, pensou por alguns
segundos. E deu uma resposta que faz de Roberto, o segundo, um personagem
desconexo:
— Isso tem que ser
discutido.
Chama-se Paulo César de Araújo o autor do
livro retirado das prateleiras. Que pecados teria cometido para merecer o
banimento editorial? Imaginou-se que, ao se dispor a enfrentar o tema sob
holofotes, Roberto 1º exporia suas razões em profundidade. Não foi o que
sucedeu. Ele preferiu ziguezaguear ao redor do tema:
— O biógrafo também
pesquisa uma história que está feita. Que está feita pelo biografado. Então, ele
na verdade não cria uma história. Ele faz um trabalho e narra aquela história
que não é dele. Que é do biografado. E a partir do que ele escreve, ele passa a
ser dono da história. E isso não é certo.
— [Não é certo] por uma
questão também comercial?, a repórter tentou entender.
Nesse ponto, Roberto 1º saiu-se com uma
declaração que abre um mar de reticências que, de tão profundo, pode ser
atravessado por uma formiga –com água na altura da canela:
— Por tudo, ele
se limitou a dizer.
De repente, ganharam viço as indagações que Ruy
Castro dirigiu à ministra Marta Suplicy (Cultura) na Feira do Livro de
Frankfurt. Escritor refinado, Ruy também já foi vítima dos artigos do Código
Civil que permitem aos famosos e aos seus parentes requerer a censura prévia de
livros. “Eu perguntei [à ministra] se o biógrafo vai ter que pagar um dízimo
ao biografado”, contou Ruy Castro dias atrás. “Pagar esse dízimo vai
garantir nossa liberdade? Eu posso pagar um dízimo ao Roberto Carlos e falar da
perna mecânica?”
Sempre se imaginou que o caso da perna,
mencionado pelo jornalista Paulo César de Araújo na obra proibida, fosse o
motivo da revolta de Roberto 1º. Curiosamente, ele negou essa versão.
Revelou à plateia que vem aí uma novidade.
— Eu estou escrevendo a
minha história. E informando muito mais a essas pessoas sobre a minha vida,
sobre as minhas coisas, muito mais do que qualquer outra fonte.
Em vez de pagar dízimo a terceiros, o dono da
perna mecânica como que reivindica o monopólio do culto à sua autoimagem:
— Pessoas têm dito que eu
sou contra [a biografia] por causa do meu acidente, que foi contado, essa coisa
toda. Não é isso, não. Eu, quando escrever meu livro, eu vou contar do meu
acidente. Ninguém poderá contar do meu acidente melhor que eu. Ninguém poderá
dizer aquilo que aconteceu com todos os detalhes que eu posso. Porque ninguém
poderá dizer o que eu senti e o que eu passei. Desculpa a rima, porque isso aí
só eu sei.
Roberto 1º tem todo o direito de escrever sobre
si mesmo. Ele é dono da própria vida. Construiu uma biografia edificante. Mas
isso não o torna dono da história. Tampouco o biógrafo, ao narrar “uma história
que está feita”, vira proprietário dela. A história é um bem coletivo. E a
privacidade de quem optou por viver na vitrine é um direito relativo. A vacina
contra eventuais calúnias, difamações ou mentiras é o processo judicial, não a
censura prévia.
— Quem escreveria a
biografia do Roberto Carlos com as bênçãos do Rei?, quis saber a
entrevistadora.
— Eu. Detalhes que, com
certeza, não vão estar em outras biografias.
— Mas às vezes o biografado
não quer contar tudo, né, Roberto?
— Sim, mas eu vou contar
tudo que eu realmente acho que tem sentido de contar em relação àquilo que eu
senti, que eu vivi.
Levando-se Roberto 1º ao pé da letra,
confirma-se a suspeita de que toda tentativa de relato historiográfico, a
começar pelo texto inaugural de Heródoto, o ‘pai da história’, é uma lenda. Só
que muito mais mentirosa. O que salva o passado do esquecimento são as
autobiografias.
Assim, nenhum brasileiro deve entrar em pânico
se, ao folhear uma obra chapa-branca sobre a história da música popular
brasileira e dos seus maiores ídolos, sentir uma sensação estranha. A sensação
de um passageiro que viaja num avião sabendo que sua bagagem, com tudo o que
possui, viaja em outro.
O direito à informação estaria mais garantido
se Roberto 2º, aquele que se diz “a favor” das biografias não autorizadas,
prevalecesse sobre o outro, que condiciona o fim da censura prévia à realização
de “alguns ajustes”. O diabo é que Roberto 1º se nega a detalhar os
“ajustes”.
— Que ajustes seriam
esses?, perscrutou a repórter.
— Isso aí tem que se
discutir. São muitas coisas. Tem que haver um equilíbrio e alguns ajustes para
que essa lei não venha a prejudicar nem um lado, nem outro. Nem o lado do
biografado, nem o lado do biógrafo. E que não fira a liberdade de expressão e o
direito à privacidade.
Moral da “história”: em terra de cego,
biógrafo que tem um olho foge do rei.
Josias de Souza
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