Baleia no filme “Vidas Secas”, por Nelson Pereira dos
Santos
Tempos gracilianíssimos. O autor de “Angústia”, o mais russo dos livros
brasileiros, é homenageado na 11ª Flip que começa hoje. Talvez estrebuche um
tanto na cova, talvez emita apenas uns resmungos -era avesso a badalações como o
mais guardado matuto.
Tempos de “Vidas Secas”, como na estiagem deste ano que deixou as pegadas do
estrago e as caveiras das reses nas estacas. O mundo coberto de penas a cada
bicada dos urubus.
Tempos gracilianíssimos no país. Os políticos com medo das ruas como um
menino das Alagoas com medo do papa-figo, personagem de crônicas do velho Graça.
Tempos de cus nas mãos, como os abestalhados diante de “Caetés”.
Graciliano Ramos, o político, tem muito o que ensinar nessa hora. Os seus
“Relatórios”, a prestação de contas do escritor enquanto jovem prefeito de
Palmeiras dos Índios (AL), entre 1929-30, é aula magna.
Deveria, como disse na eleição passada, ser leitura com direito a ditado e
prova oral para a classe política. Se possível com castigo de palmatória, como
no seu tempo, para os reprovados. Cada frase do velho Graça vale por toda a Lei
da Ficha Limpa.
Repare nesta pérola sobre obras de iluminação pública: “A prefeitura foi
intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de
luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo
às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá.”
Comunista, o escritor enviou o seu texto, considerado hoje uma obra-prima da
crônica de costumes, ao então governador Álvaro Paes, que ficou impressionado
com o valor literário do deveria ser apenas mais um documento da burocracia
administrativa.
Sobre o cemitério, escreve: “Pensei em construir um novo cemitério, pois o
que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me
aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra,
embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes
que não reclamam.”
Os “Relatórios” foram publicados inicialmente em uma coedição da Fundação de
Cultura do Recife com a editora Record, nos anos 1980. A edição tem
apresentações do advogado e escritor José Paulo Cavalcanti Filho, integrante da
Comissão da Verdade, e do jornalista Joel Silveira, o repórter, a víbora do
jornalismo brasileiro.
Imagine um atual prefeito, amigo, abrir a boca e reconhecer a ineficiência do
ensino municipal. Graciliano, com seu humor árido qual a paisagem sertaneja, não
temia a sinceridade.
“Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a
habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar
sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.”
Enxuto nos gastos como a sua escrita, Graciliano relata cortes em despesa.
Sobre a estrada que liga Palmeiras dos Índios à sua Quebrangulo natal, foi
enfático: “Original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser
transitados por automóvel Ford e lagartixa”.
Mirem-se no exemplo!
Xico Sá

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