Um dos momentos mais
intimistas e de maior empatia da 11a. Flip (Festa Literária
Internacional de Paraty) foi o recital de Fernando Pessoa feito pela cantora
Maria Bethânia e pela professora Cleonice Berardinelli, “Dona Cléo”. Maria
Bethânia foi uma das maiores divulgadoras da poesia de Pessoa em seus shows, a
partir (creio) de Rosa dos Ventos, e depois em todos os outros em que
trabalhou sob a direção de Fauzi Arap, a quem ela atribui tê-la “aplicado” com a
poesia do português. Dona Cléo, aos 96 anos, considerada a maior especialista
pessoana no Brasil, diz ter sido “inoculada” ainda aos vinte e poucos, por seu
professor Thiers Martins Moreira, a quem dedicou um dos seus estudos sobre o
poeta.
Respondendo a perguntas da
platéia, entremeadas a provocações amistosas do mediador Júlio César Diniz, as
duas recitaram poemas alternados dos heterônimos de Pessoa, e, às vezes, em
estilo “mourão voltado”, cada uma dizendo uma linha. Poemas ditos em voz alta,
principalmente por pessoas que os leem, releem e examinam há muitos anos, sempre
trazem surpresas. Cada interpretação é pessoal. Certos versos parecem plácidos e
tranquilos até que os ouvimos ditos com voz veemente, e percebemos que havia uma
tempestade por baixo dele. Um tom interrogativo ou hesitante pode enriquecer uma
frase aparentemente banal. Em geral, quando lemos, temos como único guia musical
a pontuação gráfica, que serve como uma espécie de notação musical: indica
pausas, força, pergunta, mudança de tom, etc. A leitura na voz alheia nos
mostra que outras pontuações, além da escolhida pelo autor, podem ser aplicadas
àquelas frases.
Pessoa foi único em sua
multiplicidade assumida. Depois dele percebemos que muitos outros poetas
poderiam ter usado heterônimos para explicar facetas diversas de si mesmo. O
Augusto dos Anjos humano e afetivo de “Ricordanza della mia gioventù” e “A
árvore da serra” não é necessariamente a mesma personalidade que concebeu as
visões tenebrosas do “Poema Negro” e das “Tristezas de um quarto
minguante”.
É surpreendente também
constatar que o baú de Pessoa tem mais material que o de Raul Seixas. Desde a
morte do poeta em 1935 não param de aparecer poemas inéditos, que Dona Cléo
afirma serem às vezes quase ilegíveis, pela idade do papel e da tinta, além da
própria caligrafia do autor. Requerem lupa, requerem fotos e ampliações,
requerem longas discussões sobre palavras borradas ou obscuras. Como se cada
palavra fosse ao mesmo tempo várias outras, e cada uma dessas escolhas nos desse
a possibilidade de compor, por multiplicação combinatória, incontáveis poemas
diferentes.
Braulio Tavares
(mundo fantasmo)
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