Quando vejo todas essas manifestações de estudantes aprovados em vestibular, a
exemplo de cabeças raspadas, trotes os mais diversos e comemorações em família,
penso imediatamente também na minha chegada à faculdade de Direito, em 1980. No
meu primeiro dia de aula, um “veterano” se fez passar por professor e nos mandou
tomar nota das expressões mais esdrúxulas. Na aula verdadeira, um professor
sisudo, terno bem cortado e sempre abotoado, falou-nos sobre a grandeza da
“ciência do Direito” e algo parecido com “ubi societas, ibi jus”, ou seja, nós
não tínhamos mais saída: onde houvesse sociedade organizada, inevitavelmente
haveria o Direito.
Os primeiros assuntos aprendidos estavam sempre relacionados à grandiosidade do Direito na sociedade e na eloquência de sua linguagem. Aquele tal professor sisudo nos embeveceu por algumas aulas discursando sobre o tópico “terminologia jurídica”. Uma glória! A bibliografia recomendada tinha os títulos mais grandiosos que um curso universitário pode ter: notas introdutórias, compêndio, manual, curso disto e daquilo… Mas, na verdade, o que nos fascinava mesmo eram os códigos! Sonhávamos com o dia em que seríamos “obrigados” a trazer os códigos para a aula. Aqueles livros grossos, letrinhas pequenas, papel bíblia e capas com tipos dourados eram quase um fetiche.
As disciplinas propedêuticas passaram despercebidas. Queríamos estudar as leis. Saber os crimes e as penas, sucessões, casamento, contratos, obrigações, direitos trabalhistas… Depois de algum tempo apareceram alguns livros da turma de juristas do Rio Grande Sul, Santa Catarina e Brasília. Eram discussões sobre o Direito Alternativo, a Nova Escola Jurídica e o Direito Achado na Rua. Foram leituras inquietantes e nos despertaram para a possibilidade de um uso “alternativo” ao Direito que estávamos estudando, mas não nos incitava, ainda, para a possibilidade de um “novo” Direito.
Saí da faculdade em 1984 e logo em seguida, ainda em crise com o Direito, buscando sempre novidades, embora fazendo uma advocacia de “combate”, como defendia Roberto Lyra Filho, fiquei encantado com o título de um livro: A Ciência Jurídica e seus dois maridos. Daí, seguiram-se outros mais instigantes ainda: Manifesto do Surrealismo Jurídico, O amor tomado pelo amor, Por quien cantam las sirenas, Surfando na pororoca etc. E o autor desses livros? O argentino mais baiano e brasileiro chamado Luis Alberto Warat.
Muito mais do que títulos invocados, os livros e textos de Warat nos convidava a pensar o Direito de forma diferente. Enfim, era a primeira vez que pensávamos o Direito para além do mero estudo e aplicação das leis. E mais: para além da aplicação alternativa da lei, ou contra a lei, como defendia o Direito Alternativo, agora tínhamos a oportunidade de questionar o que até então conhecíamos como Direito, ou seja, uma ciência baseada apenas na norma. Além disso, para nosso deleite, Warat criticava com força o ensino jurídico do qual nos todos éramos vítimas. Enfim, um ensino jurídico que não nos permitia a transgressão, pois “é difícil perder-se”, como dizia Warat.
No Manifesto do Surrealismo Jurídico, por exemplo, Warat resume assim a diferença entre a pedagogia tradicional e a pedagogia surrealista: “a pedagogia tradicional, baseada na angústia da perda, é um instrumento de controle apoiado no sufocamento da imaginação criativa. Nessa forma de ensino, toda criatividade será castigada. Na pedagogia surrealista isso não acontece. Nela o fundamental será o desenvolvimento da criatividade, dos afetos e dos sonhos.” Em seguida, provoca os professores: “O professor precisa ajudar o aprendiz existencial a transformar o saber num sonho criativo e não deixa-lo com a passividade de uma vaca olhando o trem passar.” A sala de aula, no delírio surreal de Warat, seria “convertida num espetáculo sem passarela. Um lugar onde não existisse mais separação entre a voz do mestre e os ouvidos anestesiados dos alunos. Todos protagonizando a compreensão de seus vínculos com a vida, no plural do fantástico.”
Em “A Ciência Jurídica e seus dois maridos”, Warat se utiliza do romance do Jorge Amado para discutir as “máscaras” do trio famoso (Dona Flor, Vadinho e Teodoro) e desafia os juristas: “Poderão os juristas, como dona Flor, construir uma máscara de Vadinho que incite sua criatividade, que lhes provoque um ardente aspiração à extrema liberdade das ideias? Poderão proteger a criatividade mais que a propriedade”?. É também nesta obra que Warat discute a proposta de “carnavalização”. Em resumo, segundo Warat, “a metáfora do carnaval pode ajudar a entender que não há mais uma autoridade incontestável, fiadora do poder e do saber; ou se você prefere, na democracia não se pode mais aceitar o princípio de um suposto possuidor do sentido da lei, do sentido último do poder e do conhecimento social”.
Finalmente, nesta caminhada de crítica ao ensino jurídico, ao discurso jurídico e ao normativismo, Warat termina despertando, em que lhe compreende, uma relação de amor e ódio ao que conhecemos como Direito ou Ciência Jurídica. O sentimento é de amor quando traduzimos o Direito como garantia da liberdade, do “plural dos desejos”, da possibilidade de emancipação e que se realiza na alteridade, na mediação; de outro lado, o sentimento é de ódio quando o Direito é simplificado no normativismo castrador de todas as possibilidades criativas e a serviço da opressão.
Ano passado, (2010), no livro “A rua grita Dionísio! - Filosofia Surrealista e Direitos Humanos, Warat retoma críticas antigas ao ensino jurídico, aos ressurgimentos do tipo “neoconstitucionalismo” e ao Direito baseado no normativismo. Diz Warat: “Os juristas pretenderam sair, escapar da bárbarie criando seu barroco particular: o normativismo. Geraram um grande boato com pretensões de universalidade, que reforçou ideologicamente os esforços codificadores, servindo ao mesmo tempo de enlace ilusório para criar um efeito de identificação entre as normas e o Estado. O normativismo se estendeu até cobrir com suas crenças a própria ideia de Estado. [...] Este fato se deve ao conjunto de crenças normativistas, os lugares comuns do senso comum teórico dos juristas. Um senso comum que apresenta graves ingenuidades epistêmicas escondidas, que não se fazem visíveis porque estão recobertas por um sofisticado jogo de idealizações, abstrações ou universalizações que garantem a fuga dos juristas até o paraíso conceitual.”
A “Rua grita Dionísio!” é um texto denso e repleto das inquietações de Warat. No Capítulo III, por exemplo, Warat crítica a teoria dos Direitos Humanos a partir de uma perspectiva “exclusivamente normativista” e propõe “pensar os Direitos Humanos como uma concepção emergente do Direito, uma concepção do Direito e a partir daí começar a produzir, a deixar que o novo tenha sua vez”. Nesse mesmo texto Warat nos apresenta o que seria um primeiro esboço de Direitos de Alteridade. Em suas palavras, “uma listagem que me surgiu automaticamente e que pode ser alterada com variadas combinações”. O primeiro desses onze direitos esboçados por Warat seria o “direito a não estar só”, o segundo é o “direito ao amor” e o último é o “direito à própria velocidade, à lentidão”.
Por fim, para justificar também o título dessa comunicação, conversando com Marta Gama e Eduardo Rocha, talvez em uma de suas últimas conversas registradas, Warat detona definitivamente o dogmatismo, o Direito baseado no normativismo e o mito da imparcialidade do Juiz, aprofundando ainda mais em mim a relação de amor e ódio com o Direito:
-No seu entendimento os juízes conseguem ser imparciais? Os profissionais do Direito conseguem ser imparciais?
Eles devem ser imparciais?
- Não, eles não devem.
Há uma questão: se vamos modificar a história de que o juiz é aquele que decide, a imparcialidade perde o sentido. Porque no fundo o problema não é a imparcialidade e sim a arbitrariedade. A sensibilidade permite ao juiz tomar a consciência de que não deve ser insensível. A imparcialidade significa tomar distância e eu creio que estamos buscando através do trabalho de sensibilização implicar o juiz no conflito e não afastá-lo. (http://gerivaldoneiva.blogspot.com/2010/12/marta-gama-e-eduardo-rocha-entrevistam.html).
Não se assustem meus amiguinhos que estão iniciando agora sua relação com o Direito. Os conflitos e as dúvidas estão começando agora. Muitas ainda virão e com mais intensidade ainda. Isto é bom. Significa, sobretudo, que resolvemos nos apaixonar por um desafio: decifra-me ou devoro-te. Aliás, como disse Warat na entrevista concedida a Marta e Eduardo, antes de resolver nossos conflitos com o Direito, “nós temos que inventar um sentido para nossas vidas.”
Os primeiros assuntos aprendidos estavam sempre relacionados à grandiosidade do Direito na sociedade e na eloquência de sua linguagem. Aquele tal professor sisudo nos embeveceu por algumas aulas discursando sobre o tópico “terminologia jurídica”. Uma glória! A bibliografia recomendada tinha os títulos mais grandiosos que um curso universitário pode ter: notas introdutórias, compêndio, manual, curso disto e daquilo… Mas, na verdade, o que nos fascinava mesmo eram os códigos! Sonhávamos com o dia em que seríamos “obrigados” a trazer os códigos para a aula. Aqueles livros grossos, letrinhas pequenas, papel bíblia e capas com tipos dourados eram quase um fetiche.
As disciplinas propedêuticas passaram despercebidas. Queríamos estudar as leis. Saber os crimes e as penas, sucessões, casamento, contratos, obrigações, direitos trabalhistas… Depois de algum tempo apareceram alguns livros da turma de juristas do Rio Grande Sul, Santa Catarina e Brasília. Eram discussões sobre o Direito Alternativo, a Nova Escola Jurídica e o Direito Achado na Rua. Foram leituras inquietantes e nos despertaram para a possibilidade de um uso “alternativo” ao Direito que estávamos estudando, mas não nos incitava, ainda, para a possibilidade de um “novo” Direito.
Saí da faculdade em 1984 e logo em seguida, ainda em crise com o Direito, buscando sempre novidades, embora fazendo uma advocacia de “combate”, como defendia Roberto Lyra Filho, fiquei encantado com o título de um livro: A Ciência Jurídica e seus dois maridos. Daí, seguiram-se outros mais instigantes ainda: Manifesto do Surrealismo Jurídico, O amor tomado pelo amor, Por quien cantam las sirenas, Surfando na pororoca etc. E o autor desses livros? O argentino mais baiano e brasileiro chamado Luis Alberto Warat.
Muito mais do que títulos invocados, os livros e textos de Warat nos convidava a pensar o Direito de forma diferente. Enfim, era a primeira vez que pensávamos o Direito para além do mero estudo e aplicação das leis. E mais: para além da aplicação alternativa da lei, ou contra a lei, como defendia o Direito Alternativo, agora tínhamos a oportunidade de questionar o que até então conhecíamos como Direito, ou seja, uma ciência baseada apenas na norma. Além disso, para nosso deleite, Warat criticava com força o ensino jurídico do qual nos todos éramos vítimas. Enfim, um ensino jurídico que não nos permitia a transgressão, pois “é difícil perder-se”, como dizia Warat.
No Manifesto do Surrealismo Jurídico, por exemplo, Warat resume assim a diferença entre a pedagogia tradicional e a pedagogia surrealista: “a pedagogia tradicional, baseada na angústia da perda, é um instrumento de controle apoiado no sufocamento da imaginação criativa. Nessa forma de ensino, toda criatividade será castigada. Na pedagogia surrealista isso não acontece. Nela o fundamental será o desenvolvimento da criatividade, dos afetos e dos sonhos.” Em seguida, provoca os professores: “O professor precisa ajudar o aprendiz existencial a transformar o saber num sonho criativo e não deixa-lo com a passividade de uma vaca olhando o trem passar.” A sala de aula, no delírio surreal de Warat, seria “convertida num espetáculo sem passarela. Um lugar onde não existisse mais separação entre a voz do mestre e os ouvidos anestesiados dos alunos. Todos protagonizando a compreensão de seus vínculos com a vida, no plural do fantástico.”
Em “A Ciência Jurídica e seus dois maridos”, Warat se utiliza do romance do Jorge Amado para discutir as “máscaras” do trio famoso (Dona Flor, Vadinho e Teodoro) e desafia os juristas: “Poderão os juristas, como dona Flor, construir uma máscara de Vadinho que incite sua criatividade, que lhes provoque um ardente aspiração à extrema liberdade das ideias? Poderão proteger a criatividade mais que a propriedade”?. É também nesta obra que Warat discute a proposta de “carnavalização”. Em resumo, segundo Warat, “a metáfora do carnaval pode ajudar a entender que não há mais uma autoridade incontestável, fiadora do poder e do saber; ou se você prefere, na democracia não se pode mais aceitar o princípio de um suposto possuidor do sentido da lei, do sentido último do poder e do conhecimento social”.
Finalmente, nesta caminhada de crítica ao ensino jurídico, ao discurso jurídico e ao normativismo, Warat termina despertando, em que lhe compreende, uma relação de amor e ódio ao que conhecemos como Direito ou Ciência Jurídica. O sentimento é de amor quando traduzimos o Direito como garantia da liberdade, do “plural dos desejos”, da possibilidade de emancipação e que se realiza na alteridade, na mediação; de outro lado, o sentimento é de ódio quando o Direito é simplificado no normativismo castrador de todas as possibilidades criativas e a serviço da opressão.
Ano passado, (2010), no livro “A rua grita Dionísio! - Filosofia Surrealista e Direitos Humanos, Warat retoma críticas antigas ao ensino jurídico, aos ressurgimentos do tipo “neoconstitucionalismo” e ao Direito baseado no normativismo. Diz Warat: “Os juristas pretenderam sair, escapar da bárbarie criando seu barroco particular: o normativismo. Geraram um grande boato com pretensões de universalidade, que reforçou ideologicamente os esforços codificadores, servindo ao mesmo tempo de enlace ilusório para criar um efeito de identificação entre as normas e o Estado. O normativismo se estendeu até cobrir com suas crenças a própria ideia de Estado. [...] Este fato se deve ao conjunto de crenças normativistas, os lugares comuns do senso comum teórico dos juristas. Um senso comum que apresenta graves ingenuidades epistêmicas escondidas, que não se fazem visíveis porque estão recobertas por um sofisticado jogo de idealizações, abstrações ou universalizações que garantem a fuga dos juristas até o paraíso conceitual.”
A “Rua grita Dionísio!” é um texto denso e repleto das inquietações de Warat. No Capítulo III, por exemplo, Warat crítica a teoria dos Direitos Humanos a partir de uma perspectiva “exclusivamente normativista” e propõe “pensar os Direitos Humanos como uma concepção emergente do Direito, uma concepção do Direito e a partir daí começar a produzir, a deixar que o novo tenha sua vez”. Nesse mesmo texto Warat nos apresenta o que seria um primeiro esboço de Direitos de Alteridade. Em suas palavras, “uma listagem que me surgiu automaticamente e que pode ser alterada com variadas combinações”. O primeiro desses onze direitos esboçados por Warat seria o “direito a não estar só”, o segundo é o “direito ao amor” e o último é o “direito à própria velocidade, à lentidão”.
Por fim, para justificar também o título dessa comunicação, conversando com Marta Gama e Eduardo Rocha, talvez em uma de suas últimas conversas registradas, Warat detona definitivamente o dogmatismo, o Direito baseado no normativismo e o mito da imparcialidade do Juiz, aprofundando ainda mais em mim a relação de amor e ódio com o Direito:
-No seu entendimento os juízes conseguem ser imparciais? Os profissionais do Direito conseguem ser imparciais?
Eles devem ser imparciais?
- Não, eles não devem.
Há uma questão: se vamos modificar a história de que o juiz é aquele que decide, a imparcialidade perde o sentido. Porque no fundo o problema não é a imparcialidade e sim a arbitrariedade. A sensibilidade permite ao juiz tomar a consciência de que não deve ser insensível. A imparcialidade significa tomar distância e eu creio que estamos buscando através do trabalho de sensibilização implicar o juiz no conflito e não afastá-lo. (http://gerivaldoneiva.blogspot.com/2010/12/marta-gama-e-eduardo-rocha-entrevistam.html).
Não se assustem meus amiguinhos que estão iniciando agora sua relação com o Direito. Os conflitos e as dúvidas estão começando agora. Muitas ainda virão e com mais intensidade ainda. Isto é bom. Significa, sobretudo, que resolvemos nos apaixonar por um desafio: decifra-me ou devoro-te. Aliás, como disse Warat na entrevista concedida a Marta e Eduardo, antes de resolver nossos conflitos com o Direito, “nós temos que inventar um sentido para nossas vidas.”
Bruno Azevedo - João Pessoa, Paraíba
Juiz de
Direito - Professor de Direito - UEPB. Especialista e Mestre em Direito
Constitucional. Doutorando na
UERJ
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