Tradição nada tem a ver
com se pintar como aborígenes pra defender reservas
indígenas
A modernidade é uma declaração de guerra à
ideia de tradição. Mas nós, modernos, continuamos a não perceber isso, e
o resultado é que suspiramos como bobos diante do que pensamos ser uma tradição,
apesar de detestarmos qualquer sinal verdadeiro de tradição.
Procuramos tradições em workshops xamânicos,
espaços budistas nas Perdizes, livros baratos sobre como viviam os
druidas.
São muitas as definições de tradição.
Não vou dar mais uma, mas sim elencar atitudes que estão muito mais próximas
do que é uma tradição do que cursos de cabala nos Jardins. Nada tenho contra
estudar culturas antigas, apenas julgo um equívoco confundir a ideia de
tradição com modas de uma espiritualidade de consumo.
Não existe xamã na Vila Madalena. A
cabala não vai salvar meu casamento. Meditação não fará de mim uma
pessoa melhor no trabalho. Imitar a alimentação de monges tibetanos não
aliviará minha inveja. Frequentar cachoeiras indígenas não fará de mim
uma pessoa menos consumista. Tatuar palavras védicas não me impedirá de
fazer qualquer negócio pra viver mais. Visitar templos no Vietnã não fará
de mim alguém menos dependente das redes sociais. Desejar isso fará de mim
apenas ridículo.
Uma tradição, pra começo de conversa, nada
tem a ver com "escolha". Não se escolhe uma tradição. Neste sentido, muitos
rabinos têm razão em desconfiar de conversos ao judaísmo por opção. Uma
tradição funciona sempre contra sua vontade, à revelia de sua consciência,
submetendo-a ao imperativo que escapa à razão mais imediata. A única forma
de tradição a que a maioria de nós ainda tem acesso é a língua materna.
Colocar os filhos pra dormir todos os dias é
mais próximo do que é uma tradição do que estudar velhos símbolos indígenas ou
brincar com eles em pousadas nas chapadas. Não poder sair à noite porque
um dos filhos tem febre é tradição. Velá-lo durante a noite é tradição. Morrer
de medo durante esta noite é tradição. Nada menos tradicional do que uma
mulher sem filhos. Ela até pode aprender capoeira, mas será apenas iludida, se
sua intenção for experimentar a tradição afro.
Nada tenho contra mulheres não terem filhos,
digo apenas, de forma modesta, o que é uma tradição.
Homens que sustentam sua mulher e filhos são
tradicionais, mesmo em tempos como os nossos em que todo mundo mente sobre isso.
Levar seus velhos ao hospital, enterrá-los, em agonia ou com absoluta
indiferença, é tradição. Andar pela casa à noite pra ver se tem algum ladrão,
enquanto sua mulher e filhos ficam protegidos no quarto, é tradição. Ser
obrigado a ser corajoso é uma tradição, maldita, mas é.
Pular sete ondas numa Copacabana lotada nada
tem de tradicional, é apenas chato. Tradição é ir pra guerra se não sua
mulher achará você covarde. Lavar louça, fazer o jantar, lavar banheiros, morrer
de medo diante do médico. Falar disso pra quem vive uma situação semelhante a
você. Ter que passar nas provas na escola. Ter que ser melhor do que os colegas.
Sangrar todo mês.
Tradição é pagar contas, enfrentar
finais de semana vazios e não desistir. É sonhar com um futuro que nunca chega.
Engravidar a namorada. Ter ciúmes. Odiar Deus porque somos mortais. Ter inveja
da amiga mais bonita, do amigo mais forte e inteligente. É cuidar dos netos. É
educar os mais jovens e não deixar que eles acreditem nas bobagens que
inventam.
Tradição funciona como hábitos que se impõem
com a força de um vulcão, de um terremoto, de um tsunami, de uma febre amarela.
Nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra defender reservas indígenas ou
abraçar árvores.
Evolução espiritual é um dos top em quem quer
"adquirir" uma tradição. Mas esta nada tem a ver com "buscar" uma
evolução espiritual como forma de fugir de filhos que têm febre ou compromissos
afetivos. A evolução espiritual verdadeira é algo que nos acomete como uma
disciplina aterrorizante.
Teste definitivo: você busca evolução
espiritual pra aperfeiçoar seu "euzinho"? Lamento dizer que qualquer
evolução espiritual (se existir) começa com você esquecer que seu euzinho
existe.
LUIZ FELIPE PONDÉ
Folha de São Paulo
ponde.folha@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário