Depois das fogueiras ancestrais, a poesia
viajou de mão em mão, na garupa dos cavalos, entre os sabores e os cheiros.
Foi contrabandeada, moeda de troca, entre
tribos do deserto, mendigos nômades e a insónia das crianças.
Todas as tentativas para a aprisionarem em
tábuas de argila, na trama colorida dos teares, na sinalética efémera dos
curtumes, cederam à desertificação, à corrupção e à fome.
Isso é o que gostaria de acreditar, o que a
cultura me ensinou ser de bom-tom e ficar bem em qualquer página.
Decorridos cinquenta anos, se tivesse de deitar
contas à vida, digamos que a passei a escrever poemas.
Sem conseguir perceber onde fui apanhado pela
poesia.
E sem me preocupar que o descaramento do
balanço ou a indiferença pelo início, me exponham ao ostracismo e à
desconfiança.
Recordo-me vagamente de uma tribo de ciganos à
porta de casa, de um bibe a declamar numa sala vazia, de uma oliveira dilacerada
pelo tempo e os canivetes.
Recordo-me também de um velho livro, com as
capas roçadas pelo uso e as letras gastas por dedos titubeantes e fascinados.
Ao contrário do que talvez fosse de esperar,
não agradeço nada à poesia, nem sinto que lhe deva o que quer que seja.
E se a nossa coexistência nem sempre foi
pacífica, isso deve-se mais à atenção a que nos forçam, do que à ausência que
nos exigimos.
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