segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Memória descritiva - Poesia

Depois das fogueiras ancestrais, a poesia viajou de mão em mão, na garupa dos cavalos, entre os sabores e os cheiros.
Foi contrabandeada, moeda de troca, entre tribos do deserto, mendigos nômades e a insónia das crianças.
 
Todas as tentativas para a aprisionarem em tábuas de argila, na trama colorida dos teares, na sinalética efémera dos curtumes, cederam à desertificação, à corrupção e à fome.
 
Isso é o que gostaria de acreditar, o que a cultura me ensinou ser de bom-tom e ficar bem em qualquer página.
 
Decorridos cinquenta anos, se tivesse de deitar contas à vida, digamos que a passei a escrever poemas.
 
Sem conseguir perceber onde fui apanhado pela poesia.
 
E sem me preocupar que o descaramento do balanço ou a indiferença pelo início, me exponham ao ostracismo e à desconfiança.
 
Recordo-me vagamente de uma tribo de ciganos à porta de casa, de um bibe a declamar numa sala vazia, de uma oliveira dilacerada pelo tempo e os canivetes.
 
Recordo-me também de um velho livro, com as capas roçadas pelo uso e as letras gastas por dedos titubeantes e fascinados.
Ao contrário do que talvez fosse de esperar, não agradeço nada à poesia, nem sinto que lhe deva o que quer que seja.
 
E se a nossa coexistência nem sempre foi pacífica, isso deve-se mais à atenção a que nos forçam, do que à ausência que nos exigimos.
 

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