O Brasil deu para dizer a si mesmo que
mudou. Que nada mais será como antes das manifestações de rua, que agora
vai. Que se os governantes e os políticos em geral não entenderem o recado das
ruas, estão fritos. É um fanfarrão, esse Brasil.
Qual é mesmo o recado das ruas? Vamos falar
a verdade: ninguém sabe. Nem as ruas sabem. Ou melhor: não há recado. O
gigante continua adormecido em berço esplêndido — o que se ouviu foi um ronco
barulhento, misturado com palavras desconexas. Esse gigante fala
dormindo.
Há alguns anos, a imprensa vem contando aos
gritos o que está acontecendo com o gigante, sem que ele mova um músculo.
E o que está acontecendo é devastadoramente simples: em uma década, o ciclo
virtuoso do país foi jogado fora pela indústria do populismo.
A crise das tarifas de ônibus (estopim dos
revoltosos) é só uma unha do monstro: o descontrole inflacionário causado
pelo derrame de dinheiro público. País rico é país com 40
ministérios.
A economia estabilizada nos anos 90, e a
posterior enxurrada de capital para os países emergentes, deram ao Brasil sua
grande chance. E ela foi queimada por um governo que investiu tudo numa
máquina eleitoral sem precedentes.
Planejamento zero. Investimento quase zero.
Infraestrutura abandonada em terra, mar e ar, com trem-bala, Belo Monte e outras
assombrações bilionárias encobrindo a realidade: o PAC entregue à pirataria da
Delta e quadrilheiros associados. A CPI do Cachoeira chegou a levantar esse
véu, mas o gigante não acordou e a CPI foi assassinada (pelo PT e seus
sócios).
Os governos Dilma e Lula bateram todos os
recordes de arrecadação, com impostos escorchantes (entre os maiores do mundo)
que empobrecem os brasileiros e enriquecem o império do oprimido. Nem um
gemido das ruas sobre isso.
Dilma anuncia um “pacto” sem nada dentro, e
ainda diz que para bancar o recheio do pastel de vento terá que aumentar
impostos. É o escárnio. E não aparece nenhum Robespierre da Candelária
para mandar a presidente engolir o seu deboche.
Enquanto isso, a maquiagem das contas
públicas vai bem, obrigado — com mais um truque contábil no incesto entre o
BNDES e o Tesouro, para forjar superávit e legalizar a gastança. É pedra
na vidraça do contribuinte, que nada ouve e nada vê. Deve estar na passeata,
exigindo cidadania.
Pensando bem, foi o governo popular quem melhor
entendeu o recado das ruas: os cães ladram e a caravana passa. Ou talvez: os
revoltados passam e a quadrilha ladra.
Para checar se o gigante estava dormindo mesmo,
o estado-maior petista chamou um dos seus para ir até o ouvido dele e chamá-lo
de otário, bem alto. Assim foi feito.
Como primeira reação oficial às passeatas,
Dilma escalou Aloizio Mercadante para dizer ao povo que ele ia ganhar um
plebiscito. E que com esse plebiscito, ele, o povo, ia fazer a “reforma
política” (o Santo Graal dos demagogos). Claro que o governo sabia que isso
era uma troça, uma piada estilo “Porta dos fundos”. Tanto que caprichou nos
ingredientes.
Para começar, a escolha criteriosa do
porta-voz. No governo da “presidenta”, cercada de ministras mulheres por
todos os lados, a aparição do ministro da Educação — cuja pasta não tinha nada a
ver com nada (nem reforma política, nem plebiscito, nem transportes, nem
orçamento, nada) — já seria impactante.
E não era qualquer ministro. Era o famoso
Mercadante, figura tostada em casos como o dossiê dos aloprados e a
“renúncia irrevogável” da liderança do PT no Senado, quando o partido
decidiu acobertar o tráfico de influência de Sarney (Mercadante revogou sua
própria renúncia em menos de 24 horas).
E o porta-voz foi logo anunciando um
“plebiscito popular”, só faltando dizer que era uma decisão de
“governo governamental”. Enfim, um quadro de “Zorra total”.
Com toda essa trágica palhaçada gritada em
seu ouvido, o gigante permaneceu estático. Sono profundo. Nem um
“basta”, nem um “#vem pra rua”, nem um “que m... é essa”.
Depois daquele incrível ensaio de Primavera Árabe (ou seria Inverno Tropical?),
com milhões nas ruas em todo o território nacional, o Brasil revolucionário
mordeu a isca como um peixinho de aquário. E está até agora discutindo,
compenetradamente, o plebiscito popular e irrevogável do Mercadante. Contando,
ninguém acredita.
O país se zangou, foi para as ruas, tuitou,
gritou, quebrou e voltou para casa sem nem arranhar quem lhe faz mal. O
projeto de privatização política do Estado, que corrói a sociedade e seu poder
de compra, está incólume. A prova disso? A popularidade de Dilma caiu,
mas quem surgiu nas pesquisas para 2014 vencendo a eleição no primeiro turno, e
escolhido “o mais preparado para cuidar da economia nacional”? Ele mesmo: Luiz
Inácio, a nova esperança brasileira.
Ora, senhor gigante: durma bem! Mas, por favor,
ronque baixo. E pare de bloquear as ruas com seus espasmos inconscientes.
Guilherme Fiúza é
escritor
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