Uma crise econômica global esquecida pela
humanidade deu origem à festa da virada há milhares de anos. E mais importante:
é graças ao Ano-Novo que você está vivo
A sensação é poderosa. No dia 31 de dezembro você
sabe que um ano zero-quilômetro vai tomar o lugar do velho, que já deu tudo o
que tinha que dar. Hora de todo mundo se reunir para ver fogo no céu, fazer
oferenda para Iamanjá, pular 7 ondinhas, abraçar qualquer estranho que estiver
por perto. É a maior festa da humanidade. A grande celebração ao ciclo da vida,
que agora recomeça.
Mas espera um pouco. Que ciclo? Que recomeço? A
geometria da vida é implacavelmente reta: você fica mais velho a cada virada de
ano e pronto. Não acontece nada de sobrenatural na meia-noite do dia 1º.
Concorda? Se você pensou "concordo", provavelmente está mentindo. Para si mesmo,
até. A ilusão de que as viradas de ano significam algo - algo grande e bom - é
universal. E é graças a ela que você está aqui, vivo.
Isso porque cada um de nós descende de alguém que
sobreviveu à maior crise econômica da história. A única que teve potencial para
riscar a humanidade da face da Terra. Ela aconteceu há milhares de anos, quando
a única coisa que nós conhecíamos como trabalho era caçar. Às vésperas de 11000
a.C., o modo de vida dos caçadores estava no auge.
O homem, àquela altura, tinha uma arma com a qual
nenhum outro predador contava: a religião. Não exatamente aquilo que vem à nossa
cabeça quando pensamos em religião, mas algo realmente abstrato: a ideia de
acreditar que existe alguma coisa maior, além da vida. Isso é um instinto básico
da nossa mente. E por ser algo comum a todos ele tornava as tribos mais coesas
em torno dos ritos espirituais e divindidades que cada uma criava.
Agora,
unidos, cada vez mais numerosos e habilidosos, os Homo sapiens tinham virado os
maiores predadores que a Terra já vira. Era um momento de euforia. Só que, como
toda euforia, essa também era irracional.
A caça indiscriminada tinha diminuído a
quantidade de animais selvagens disponíveis por aí. Para piorar, um
miniaquecimento global fez rarear presas das boas, como bisões e mamutes (nota:
daquela vez o aquecimento não foi culpa nossa, era só o fim de mais uma Era
Glacial). O ponto é que a escassez de proteína animal colocou em xeque o modo de
vida dos nossos avós caçadores.
Isso não aconteceu de uma tacada só no planeta
todo, note bem. Naqueles dias a vida era em tribos de 100, 150 pessoas que,
quando entravam em contato umas com as outras, era para guerrear. Cada uma viveu
uma escassez a seu tempo. E foi mais de uma. Só que, olhando daqui de longe, a
junção desses problemas esparsos pode ser vista como uma grande crise
global.
Mas e para sair dessa crise? Bom, a solução foi
parecida com a de hoje. O que os Bancos Centrais fizeram em 2009 foi imprimir
dinheiro. Em 11000 a.C. decidiram imprimir outra coisa: comida. Na terra.
Cultivar sementes e esperá-las crescer era o jeito de conseguir as calorias que
a caça não dava mais.
Só que aí veio uma surpresa: essa técnica, a
agricultura, permitia sustentar de 10 a 100 vezes mais pessoas no mesmo espaço
físico. Os que optaram por esse caminho cresceram e se multiplicaram. Mas eles
só conseguiram isso porque inventaram um novo deus:o calendário.
No culto da passagem dos dias esperando as
sementes darem fruto, a humanidade descobriu um ótimo método para saber as
épocas certas de plantar: observar a posição das estrelas e a trajetória do Sol
ao longo do ano. Fazer a leitura do céu era tão essencial para a agricultura,
que povos de todos os cantos do mundo aprenderam isso mais hora menos hora. E
assim dominaram algo que parecia sobrenatural: os ciclos do tempo. Mas
pragmatismo científico nunca foi o nosso forte como espécie. E é por isso que o
céu foi tratado como divindade.
Só o fato de você saber seu signo já se trata de
uma herança dessa época - as 12 constelações do zodíaco são nada mais que os
conjuntos de estrelas mais usados para marcar as estações do ano.
É esse mesmo impulso de divinizar as coisas que
levou à felicidade instintiva de se entregar a rituais como pular 7 ondas. É
esse impulso que faz a vida parecer feita de ciclos. As colheitas é que são de
fato cíclicas. Ao divinizá-las, nossos ancestrais imprimiram na cultura humana a
ideia de que a própria vida se renova a cada ano. E festejar essas renovações
era fundamental para que continuássemos vivos. Olha só. O Ano-Novo é uma das
festas para marcar o auge do frio no hemisfério norte - a outra é o Natal.
Na ausência de um instinto biológico tão forte
quanto o das formigas para acumular comida para o inverno, a sensação de que um
evento superimportante estava para acontecer bem no meio da estação fria fazia
nossos ancestrais agir exatamente como elas, economizando para ter banquetes na
época de fome. E cada geração transmitiu para suas crianças que aquele era o
momento mais especial do ano. Era mesmo. E ainda é. Trata-se do momento em que
comemoramos a sobrevivência da espécie humana. Pelo menos até a próxima grande
crise chegar. Ou ela já chegou?
Fonte: Superinteressante
Nenhum comentário:
Postar um comentário