►“Há uma anotação do Barão de Teive, heterônimo de Fernando Pessoa, que define, com precisão, o drama dos cronistas. Diz o barão, em seu A educação do estóico: ‘Tornara-me objetivo para mim mesmo. Mas não podia distinguir se com isso me achara, ou me perdera’.
“A crônica, diz-se, é o gênero da objetividade e domínio do eu. Nela, os escritores abandonam quimeras e máscaras para, enfim, descer ao mundo concreto e falar de si. A leitura de Cacos & carícias & outras crônicas, coletânea de crônicas de Hilda Hist lançada pela editora Globo, porém, expõe a ambiguidade dessa escolha.
“Ocorre que o eu, que nas crônicas enfim fala, ainda é, e sempre será, uma ficção. Quando dizemos ‘eu’, por mais sinceros que sejamos, manejamos ainda a mentira. Ele não passa de um esboço, precário, do que desejamos ser.
“Por conta dessa opção pelo eu, a crônica é vista, quase sempre, como um gênero literário menor. As primeiras suspeitas derivam de sua vizinhança com o jornalismo. De que ela trata, de eventos imaginários ou da vida real? Qual é seu objeto, a fantasia ou os fatos? Afinal, quem é o cronista: um escritor ou um jornalista?
“A crônica, na verdade, carrega os escritores até fronteiras que se avizinham do mundo — mas que ainda não são o mundo. Ela promete ao leitor um pouco da vida bruta — mas tudo o que oferece, ainda assim, é um punhado de palavras.
“Gênero limítrofe, a crônica é vista com suspeita tanto pelos escritores, que a julgam datada e ligeira, como pelos jornalistas, que a consideram fantasiosa. Escapa a ambos que ela é um lugar de entrecruzamento, um gênero sem gênero, um trangênero, o que, a propósito, combina com nossa época de transgênicos, de transnacionais e de transexuais.
“O que a crônica põe a nu não é o mundo, mas a própria literatura, que é sempre ‘movimento através de’. Como Macunaíma, o anti-herói de Mário de Andrade, ela se define pela ausência de caráter, o que não quer dizer mau-caráter. Posição periférica, que lhe confere o poder de deslocar perspectivas e de aniquilar certezas. Lugar, por fim, da própria literatura.
“Situado à margem, o cronista perde sem prestígio, mas ganha em liberdade. Experimenta a mesma leveza que sentimos ao chegar às fronteiras extremas, onde as regras desaparecem, as certezas se evaporam e só nos resta a brutalidade do horizonte.”
[...]
“Não posso deixar de lembrar da sentença do psicanalista hindu Wilfred Bion: ‘A palavra é só um relâmpago entre duas escuridões’. Gênero que imita os trânsfugas e os desertores, a crônica se torna o lugar, por excelência, desse súbito clarão. Do que quase é, mas já não é.
“A crônica não tem fórmulas. Grandes escritores como José de Alencar, Machado de Assis, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes a praticaram. Seduzidos, por certo, não por sua suposta pureza, mas pela impureza que a define.”
[...]
“Roçar o enigma, tangenciá-lo, eis tudo o que um escritor sempre deseja. Seja com a leveza da crônica, seja com a aspereza do romance ou a elevação do poeta, é sempre em torno de um enigma que o escritor escreve.”
(CASTELLO, José. Viagem à fronteira. In: ____. Sábados inquietos. São Paulo: Leya, 2013, pp. 12-3.)
►“[...] O bom cronista despreza os grandes temas e prefere as migalhas oferecidas pelo cotidiano. Prefere se elevar e voar a agarrar e prender.”
“[...] Penso em Rubem Braga, em José Carlos Oliveira, em Paulo Mendes Campos. Que outra coisa praticaram senão a arte de liberar o mundo das amarras da arrogância? O que é crônica — gênero do eu e da confissão, mas também do mundo e da invenção — senão um artifício que nos leva a dar rasantes sobre o mundo, não como quem agride e domina, mas como alguém que o acaricia? Em vez da ‘vertigem da sobreloja’, que só afasta da realidade e dos outros, o doce bordejar da existência.
“Mesmo sendo o gênero do eu, a crônica não é o lugar da exibição e do triunfo. [...] Falhar: eis tudo o que um cronista deve saber. [...] Não o gênero da glória e da empáfia, mas o gênero da delicadeza e do fracasso. Um gênero, enfim, do humano. Cronistas são homens que aprendem a olhar. Homens que praticam o que Humberto Werneck chama de ‘olhares que iluminam’.
“A crônica, ele nos mostra ainda, é uma ‘viagem prazerosa e vadia’ pelo rés do chão. Viagem rasteira e serena, sem preparativos e sem agendas. E, quando voa — e voar faz parte também de sua natureza —, o cronista imita seu Fernando, o pai de meu amigo baiano, para quem o próprio vôo é mais importante que o destino. O cronista vê não o que os outros não vêem, mas o que os outros, mesmo vendo, desprezam. [...]”
(CASTELLO, José. A vertigem de sobreloja. In: ____. Sábados inquietos. São Paulo: Leya, 2013, pp. 196-7.)
*Sugestão de Postagem do amigo Adauto Neto
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