Ufa! Parece que a novela dos "embargos infringentes" acabou. Uma das coisas que mais se ouviram nos últimos dias foi a (im)pertinência da linguagem dos ministros do STF. Um dos alvos particulares da discussão foi justamente a expressão "embargos infringentes". Discutiu-se até sobre o número gramatical dessa expressão ("embargo infringente" ou "embargos infringentes"?).
Há alguns anos, corri o país ao lado de importantes figuras da nossa magistratura (os juízes Andrea Pachá e Rodrigo Collaço, entre outros) para pregarmos o fim do juridiquês. Proferi palestras em diversas faculdades de Direito para tentar mostrar aos estudantes a inadequação do emprego de certos termos ou expressões ainda comuns em petições e demais documentos.
Quer um belo exemplo? Lá vai: "Com supedâneo no artigo". Sabe o que é esse trem, caro leitor? Nada mais do que "com base no artigo".
A proposta dessa campanha (da ABM -Associação dos Magistrados Brasileiros) não era demagoga ou populista, ou seja, não tinha a intenção de negar a importância dos termos técnicos e da necessidade de rigor. A ideia era simplesmente combater o ridículo, ou seja, a linguagem rebarbativa, pedante, caricata. Em outras palavras, não se propunha a supressão ou a "tradução" de termos como "peculato", "prevaricação", "medida cautelar" etc. Propunha-se, sim, o fim do ridículo.
Pois bem. Não vou me meter a entrar no âmbito técnico da expressão "embargos infringentes", mas (creio) posso traduzi-la à luz da morfologia e da semântica.
O cidadão medianamente informado certamente já leu ou ouviu algo como "tal obra foi embargada". Falou-se disso recentemente quando desabou um edifício em construção no bairro paulistano de São Mateus. "Embargo" é o que "embarga", ou seja, o que obsta, impede, opõe obstáculo. Quando um fiscal de uma prefeitura embarga uma obra, impede, proíbe, não permite o seu prosseguimento.
E "infringente"? Ao pé da letra, é o que infringe. "Infringe" é forma do verbo "infringir", que significa "desrespeitar", "violar", "desobedecer", "transgredir". O "ato de infringir" se chama... Bem, no país do respeito quase zero às leis de trânsito é difícil imaginar que alguém não saiba que o ato de infringir é "infração".
Os dicionários e os manuais de direito definem "embargo infringente" como "recurso que se opõe a acórdão, objeto de decisão não unânime, proferida em apelação ou ação rescisória" ("Houaiss") ou como "recurso cabível quando não for unânime o julgado proferido em apelação e em ação rescisória" ("Glossário de Termos Jurídicos", da Procuradoria da República na Bahia).
Bem, caro leitor, se o termo jurídico é "embargos infringentes", não se pode questionar o seu emprego em ambientes específicos, e, ao que parece, é esse o caso do STF. Sobra aos que não são da área a possibilidade de (tentar) entender o significado desse e de outros termos, o que nem de longe equivale ao ridículo produzido pelo emprego de bobagens como "com supedâneo no artigo".
Certa vez, um dos meus filhos foi operado. Um dos médicos que participariam da cirurgia me disse esta maravilha: "Não se preocupe. O seu filho é uma criança eutrófica". Não lembro o que lhe disse, mas minha resposta deixou claro que eu entendera o que é "eutrófica" ("bem nutrida", "bem desenvolvida"). Sabe o que ele me disse em seguida? "O senhor é colega?" E eu: "Não. Sou professor de português". A pergunta dele evidenciou a (sua) percepção de que havia empregado linguagem inadequada à situação. Devagar com o andor. Cada caso é um caso. É isso.
Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".
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