segunda-feira, 6 de julho de 2015

A canção do suicídio

Conta-se que a cidade de Budapeste sofreu uma epidemia de suicídios nas décadas após a I Guerra Mundial.  Assim como a praga de ratos que assaltou o vilarejo alemão de Hamelin, que só se salvou com a intervenção de um misterioso flautista, houve, digamos, uma praga de pensamentos sombrios que se infiltrou em Budapeste por todas as fendas, deixando as pessoas abatidas, taciturnas, depressivas.

A devastação da guerra teve seu papel, mas enquanto outras cidades húngaras logo trataram de se reconstruir e retomar suas vidas, Budapeste mergulhou cada vez mais numa “bad trip” negativista. E os suicídios proliferavam. Havia barcos de patrulha permanentemente de vigia na proximidade das pontes, para resgatar as pessoas que se jogavam nas águas do Danubio.

Alguns deram como causa dessa onda de desespero uma canção muito popular na época, “Szomorú Vasárnap” (“Domingo Soturno”), composta por Reszô Seress e lançada em 1933. (Aqui, uma versão, com legendas em português: http://tinyurl.com/ndqn8kd). A canção ficou ainda mais popular quando em 1941 Billie Holliday a gravou em inglês, mesmo mudando a letra para um final otimista. (Aqui:http://tinyurl.com/pthrac6). É uma canção gótica, sombria, vazia de fé na vida e na humanidade. Chegou a ser banida por algumas rádios. O compositor e sua namorada também se suicidaram.

Outra versão diz que os suicídios não foram tantos e foram mera coincidência; a canção teria apenas se valido deles para lançar uma campanha de marketing. Em todo caso, surgiu uma reação quando foi criado, meio por brincadeira, o “Clube do Sorriso”, para trazer a alegria de volta à cidade. (A matéria original, com fotos, está aqui:http://tinyurl.com/ky8jqpn). Havia cursos de “como sorrir”, estudos sobre o sorriso da Mona Lisa ou de Roosevelt ou de Clark Gable, e as pessoas começaram a fabricar e distribuir máscaras artesanais com uma boca sorrindo para ser colocada por cima da boca verdadeira.

Histórias assim, contadas quase cem anos depois, sofrem simplificações violentas. O argumento dessa historieta se torna totalmente kafkeano, pois há o espírito de um Kafka pairando em cada um desses países da Europa Oriental. A literatura pode ganhar com essa mistura de morbidez sombria, humor sarcástico, atitudes coletivas bizarras. Existe algo de cartum ou desenho animado nesses rostos portando sorriso desenhados a lápis de cor; existe algo de literatura oral medieval nessa lenda de pessoas se jogando ao rio por causa de uma canção. São as raízes profundas de narrativas que falam a todos, instantaneamente compreendidas por todos, sem necessidade de explicações ou teorias.

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

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