Conhecemos a banalidade do mal
descrita pela filósofa Hannah Arendt em seu tratamento do "case"
Eichmann em Jerusalém. Pará além da questão do Holocausto em si, seu conceito
de banalidade do mal fez fama: Eichmann era um sujeito medíocre, um filho da
burocracia, sem "tato moral", como diria o sociólogo Zygmunt Bauman
em seu "Modernidade e Holocausto".
Os efeitos da burocracia são a
idiotice moral, a estupidez intelectual, o amor ao protocolo e o
"não" a qualquer forma de originalidade.
Já a banalidade do mal marca o mal
não como "uma profundidade", como na tradição bíblica, mas como uma
espécie de fungo que se espalha pelo mundo sem grandes profundidades ou
sofrimento moral, aniquilando qualquer reação moral que importe. A banalidade
do mal convive bem com horrores contanto que a janta seja servida na hora.
O mal é banal num mundo em que
pessoas que são boas mães demitem centenas de funcionários para equilibrar
custos na empresa. Como dizia o poeta russo Joseph Brodsky: "O mal adora
orçamentos equilibrados" ("Discurso Inaugural", ensaio que
integra seu livro "Menos que Um").
Mas, não quero falar da banalidade
do mal hoje. Quero falar da banalidade do bem, a irmã caçula da banalidade do
mal.
Menos conhecida, ela desfila por
nossas praças chiques em que caras limpas e bem vestidas caminham domingos e
feriados, em busca de uma vida equilibrada. Seus filhos pequenos e seus cães
brincam juntos, provando que "está surgindo uma nova geração com mais
consciência".
Voltando ao poeta russo Brodsky e ao
texto dele citado anteriormente, uma das ideias mais elegantes que o autor nos
apresenta nesse ensaio é que não devemos falar do "bem" diante de
muitas pessoas porque os maus sentimentos são os mais comum nas pessoas, e, por
isso mesmo, quando você tem muitas pessoas reunidas, o provável é que maus
sentimentos estejam por toda parte, e que você esteja falando com muitas
pessoas más.
Sobre o "bem", diz
Brodsky, deve-se falar apenas em círculos muito íntimos. Logo, não existe a
possibilidade de falarmos do "bem" nas redes sociais, se formos levar
a sério (como eu levo) o que nos diz o poeta russo. Portanto, o "bem nas
redes" é sempre banalidade do bem. E o que é a banalidade do bem, afinal?
Banalidade do bem é uma forma de
fungo também, mas que causa um efeito um tanto eufórico em quem a prática,
porque faz você se sentir bem "consigo mesmo". Tipo ajudar crianças
na África e postar fotos de você sorrindo ao lado da foto de uma delas. Ou
assistir a rituais indígenas em algum centro cultural em São Paulo e postar
fotos de você ao lado de um neoxamã. Ou postar foto de você com transexuais
mostrando que você ama a diversidade. Ou postar frases do tipo "Odeie seu
ódio!". Ou imagens de sua filha reciclando lixo.
Veja que a banalidade do bem tem uma
dependência direta de você "postar" que você é do bem. Se o habitat
natural da banalidade do mal são a burocracia e a "gestão", o habitat
natural da banalidade do bem são as redes sociais.
Aliás, um sintoma típico da
banalidade do bem é dizer frases do tipo "fazer o bem faz você se sentir
bem consigo mesmo". Evite pessoas que falam frases como essas. Se forem
suas amigas, provavelmente pegarão seus maridos ou namorados, se tiverem uma
chance. Se forem seus amigos, provavelmente, também pegarão seus maridos e
namorados.
A banalidade do bem convive bem com
sua irmã mais velha, a banalidade do mal. Aliás, arriscaria dizer que as duas
fazem uma dupla e tanto. A caçula, como toda caçula, tende a ser mais
gostosinha e em forma. A banalidade do bem tem vida equilibrada, só come comida
sem glúten, sem gordura trans, faz yoga e fala para os filhos sobre
desigualdade social.
Ambas estão preocupadas com a janta,
mas a banalidade do mal, mais "pobrinha", se contenta com novela da
Globo enquanto come a janta. Já a banalidade do bem, mais
"chiquinha", é do tipo vinho branco com comida peruana.
Mas, atenção! Se você tem certeza de
que é uma pessoa "do bem" e ficar eufórica, tome remédio contra
fungos. E seja discreta e não conte para ninguém.
Luiz Felipe Pondé
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