Uma
equação _ resume o dicionário _ é a redução de uma questão a seus pontos
essenciais. Equações poéticas, concisas e desafiadoras, atravessam “Poema
cenário”, que empresta seu título ao novo livro de Denise Emmer (Editora 7
Letras). Inusitadas sínteses que, em vez de “solucionar” problemas, deles
arrancam novas perguntas. “O poeta matemático/ Mede a eternidade ao girar uma
lâmpada no céu?” _ a poeta inaugura sua série de indagações. Em vez de facilitarem
a chegada a uma resposta, as propostas de Denise multiplicam as procuras. No
lugar da solução fácil e redutora, surge uma pergunta ainda maior.
O
silêncio é o grande tema de Denise Emmer. O silêncio não como assentimento, ou
ao contrário como reação orgulhosa, mas como uma síntese (uma equação?) do
desconhecido. Vivemos a era dos ansiolíticos, que tentam conter através da
química nossa acelerada existência. Que prometem a cura pela apatia silenciosa.
É também a era dos antidepressivos _ mas a depressão não é silêncio, é mudez. É
incapacidade de expressar um sentimento, ou uma idéia. Nos dois casos _
ansiedade e depressão _, o silêncio é oferecido como solução, mas não é
solução. Como nas equações flexíveis de Denise, ele inaugura uma nova maneira
de se aproximar do mundo e de formular perguntas ainda mais contundentes.
No
primeiro poema do livro, dedicado ao pai, a poeta se pergunta: “E o que é
silêncio/ Se não uma alma dentro do envelope?” O silêncio não é o vazio _ ele
é, mais, algo que se esconde e que se fecha. Algo que se oculta _ e que não
podemos acessar. Em outra equação, afirmando a complexidade do lugar da poesia,
Denise escreve: “O poema me pertence/ E a mais ninguém/ Sou eu o leitor, o
crítico e a musa”. Lugar aberto, em que as posições se multiplicam e a
realidade se alarga. Lugar não de retração (resposta), mas de derramamento
(pergunta). Diante da morte do pai, e em nova equação mágica, a poeta
questiona: “Como se mede o tempo dos desertos?/ Em palmos de solidão e de
serpente/ Ou com réguas do vazio simplesmente?” O deserto como uma pausa que
rasga o turbulento viver contemporâneo. Mais do que síntese, porém, ele é uma
chave capaz de abrir (operar, como numa mesa de cirurgia) nossa grande
agitação.
Escreve
ainda Denise: “agora sou um livro/ que abriga extensas pausas sem ruído/ quando
o dizer mais é dizer findo”. O poeta é o oposto do tagarela: em vez de falar
por falar, ele mede pacientemente cada palavra, pondera, gagueja. Sem a pausa,
não existe a partitura musical. Também sem o silêncio não existe a escrita
poética. Saber esperar _ saber silenciar. Não porque algo se apequena, mas, ao
contrário, porque algo se agiganta. “Já não me bastam retratos/ Se não me cabe
o silêncio”, a poeta insiste. Retrato sem moldura e sem nitidez, o silêncio
descerra um caminho e transporta um enigma. A poesia diz por pedaços _ avança
por partes e com cautela. Ao contrário do poeta, aquele que “diz tudo” não
passa de um assassino de palavras.
Um
dos lugares emblemáticos para o silêncio é o mar. Descreve Denise: “À porta do
oceano/ O pescador se curva/ Ao potro sagrado/ Do santuário mar”. Santuário:
lugar onde se guardam as coisas mais altas. Ventos, grandes ondas, sopros: o
silêncio a navegar como um grande barco. A poeta aposta, então, na contemplação
do mar sem fim. Na contemplação daquilo que não se conclui e que não se fecha.
A melhor maneira de contemplar é aceitar. Na natureza _ em suas paisagens
amplas e sem fim _ o silêncio persevera transformado em Nada. Em um poema
dedicado ao pico das Agulhas Negras, Denise escreve: “Cozes o altar das
exiladas/ Legiões longínquas dos fantasmas/ E o que alinhavas é o patamar do
nada/ Países de cidades inventadas”. Contra o ruído ensurdecedor do hoje, o
acolhimento do nada. As agulhas costuram o silêncio imenso. Dão-lhe forma e
abrigo. Elevam-no sobre o grande ronco do contemporâneo.
Sem
pressa, a poesia de Denise Emmer _uma poeta que é também violoncelista _ se
desenrola como uma música suave, a envolver nosso tempo com placidez. Música
que reveste o mundo com doçura e que, sem pressa, chega a lugares onde ninguém
mais consegue pisar. Diz a poeta, em poema dedicado ao monte Everest: “É lá
onde chegam as últimas flautas/ E esgotam-se os caminhos improváveis/ É o fim
dos cimos e seus estranhos afazeres/ O final do homem e de sua luta contra
deuses”. Grande impasse: no mesmo lugar em que a agitação humana se dissolve, o
homem _ prudente e silencioso _ se afirma. Ali, no topo do grande monte, ele
expõe o silêncio como sua grande voz. Já não precisa gritar, não precisa se
agitar, não precisa dizer. Basta-lhe viver. O som que jamais se escuta silêncio
também é.
A
poesia de Denise se transforma, assim, numa meditação sutil sobre as palavras.
“Violoncelos da floresta/ Tocam para o vazio”, descreve. “Quem os aplaude:
ninguém/ O som que jamais se escuta/ Ora tocam para o nada/ Ora tocam para o
nunca”. É ali, muito além das exigências da necessidade, muito depois da
vaidade e das ênfases, que o silêncio se afirma como única voz. As palavras
ostentam, assim, sua delicadeza. Habitam o vestíbulo do humano. Tentam chegar
até ele, mas não chegam. (E que belo esforço é esse tentar.) Murmuram, imitando
o silêncio, mas não podem tocá-lo. Diz Denise: “Permaneces parado/ Intacto
olhar da planície/ Silêncio. Nunca me viste/ És o estranho antigo”. Ali onde
nunca chegamos, ali estamos. É desse silêncio inalcançável que somos feitos.
Ele é o nosso passado remoto e também nosso futuro acolhedor.
Sugere
a poeta, assim, que _ sempre em silêncio _ nos limitemos a contemplar o mundo.
“Atenta para a vida simplesmente”, ela escreve. “Encontrarás partidos os
caminhos/ Encontrarás desfeitos os recantos/ E diluídas todas as certezas”.
Mais do que tudo: “Não acharás palavra para o espanto/ Tampouco o verbo fácil
para a beleza”. Diante da vida, as palavras falharão. Serão insuficientes,
senão banais. Da própria poesia, o que se deve esperar? A poesia, sugere Denise
Emmer, não está nas palavras, mas naquilo que a precede. Nessa grande e
silenciosa matéria viva de que somos feitos.
José Castello (18/07/2015)
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