terça-feira, 21 de julho de 2015

Poesia e silêncio

Uma equação _ resume o dicionário _ é a redução de uma questão a seus pontos essenciais. Equações poéticas, concisas e desafiadoras, atravessam “Poema cenário”, que empresta seu título ao novo livro de Denise Emmer (Editora 7 Letras). Inusitadas sínteses que, em vez de “solucionar” problemas, deles arrancam novas perguntas. “O poeta matemático/ Mede a eternidade ao girar uma lâmpada no céu?” _ a poeta inaugura sua série de indagações. Em vez de facilitarem a chegada a uma resposta, as propostas de Denise multiplicam as procuras. No lugar da solução fácil e redutora, surge uma pergunta ainda maior.
O silêncio é o grande tema de Denise Emmer. O silêncio não como assentimento, ou ao contrário como reação orgulhosa, mas como uma síntese (uma equação?) do desconhecido. Vivemos a era dos ansiolíticos, que tentam conter através da química nossa acelerada existência. Que prometem a cura pela apatia silenciosa. É também a era dos antidepressivos _ mas a depressão não é silêncio, é mudez. É incapacidade de expressar um sentimento, ou uma idéia. Nos dois casos _ ansiedade e depressão _, o silêncio é oferecido como solução, mas não é solução. Como nas equações flexíveis de Denise, ele inaugura uma nova maneira de se aproximar do mundo e de formular perguntas ainda mais contundentes.
No primeiro poema do livro, dedicado ao pai, a poeta se pergunta: “E o que é silêncio/ Se não uma alma dentro do envelope?” O silêncio não é o vazio _ ele é, mais, algo que se esconde e que se fecha. Algo que se oculta _ e que não podemos acessar. Em outra equação, afirmando a complexidade do lugar da poesia, Denise escreve: “O poema me pertence/ E a mais ninguém/ Sou eu o leitor, o crítico e a musa”. Lugar aberto, em que as posições se multiplicam e a realidade se alarga. Lugar não de retração (resposta), mas de derramamento (pergunta). Diante da morte do pai, e em nova equação mágica, a poeta questiona: “Como se mede o tempo dos desertos?/ Em palmos de solidão e de serpente/ Ou com réguas do vazio simplesmente?” O deserto como uma pausa que rasga o turbulento viver contemporâneo. Mais do que síntese, porém, ele é uma chave capaz de abrir (operar, como numa mesa de cirurgia) nossa grande agitação.
Escreve ainda Denise: “agora sou um livro/ que abriga extensas pausas sem ruído/ quando o dizer mais é dizer findo”. O poeta é o oposto do tagarela: em vez de falar por falar, ele mede pacientemente cada palavra, pondera, gagueja. Sem a pausa, não existe a partitura musical. Também sem o silêncio não existe a escrita poética. Saber esperar _ saber silenciar. Não porque algo se apequena, mas, ao contrário, porque algo se agiganta. “Já não me bastam retratos/ Se não me cabe o silêncio”, a poeta insiste. Retrato sem moldura e sem nitidez, o silêncio descerra um caminho e transporta um enigma. A poesia diz por pedaços _ avança por partes e com cautela. Ao contrário do poeta, aquele que “diz tudo” não passa de um assassino de palavras.
Um dos lugares emblemáticos para o silêncio é o mar. Descreve Denise: “À porta do oceano/ O pescador se curva/ Ao potro sagrado/ Do santuário mar”. Santuário: lugar onde se guardam as coisas mais altas. Ventos, grandes ondas, sopros: o silêncio a navegar como um grande barco. A poeta aposta, então, na contemplação do mar sem fim. Na contemplação daquilo que não se conclui e que não se fecha. A melhor maneira de contemplar é aceitar. Na natureza _ em suas paisagens amplas e sem fim _ o silêncio persevera transformado em Nada. Em um poema dedicado ao pico das Agulhas Negras, Denise escreve: “Cozes o altar das exiladas/ Legiões longínquas dos fantasmas/ E o que alinhavas é o patamar do nada/ Países de cidades inventadas”. Contra o ruído ensurdecedor do hoje, o acolhimento do nada. As agulhas costuram o silêncio imenso. Dão-lhe forma e abrigo. Elevam-no sobre o grande ronco do contemporâneo.
Sem pressa, a poesia de Denise Emmer _uma poeta que é também violoncelista _ se desenrola como uma música suave, a envolver nosso tempo com placidez. Música que reveste o mundo com doçura e que, sem pressa, chega a lugares onde ninguém mais consegue pisar. Diz a poeta, em poema dedicado ao monte Everest: “É lá onde chegam as últimas flautas/ E esgotam-se os caminhos improváveis/ É o fim dos cimos e seus estranhos afazeres/ O final do homem e de sua luta contra deuses”. Grande impasse: no mesmo lugar em que a agitação humana se dissolve, o homem _ prudente e silencioso _ se afirma. Ali, no topo do grande monte, ele expõe o silêncio como sua grande voz. Já não precisa gritar, não precisa se agitar, não precisa dizer. Basta-lhe viver. O som que jamais se escuta silêncio também é.
A poesia de Denise se transforma, assim, numa meditação sutil sobre as palavras. “Violoncelos da floresta/ Tocam para o vazio”, descreve. “Quem os aplaude: ninguém/ O som que jamais se escuta/ Ora tocam para o nada/ Ora tocam para o nunca”. É ali, muito além das exigências da necessidade, muito depois da vaidade e das ênfases, que o silêncio se afirma como única voz. As palavras ostentam, assim, sua delicadeza. Habitam o vestíbulo do humano. Tentam chegar até ele, mas não chegam. (E que belo esforço é esse tentar.) Murmuram, imitando o silêncio, mas não podem tocá-lo. Diz Denise: “Permaneces parado/ Intacto olhar da planície/ Silêncio. Nunca me viste/ És o estranho antigo”. Ali onde nunca chegamos, ali estamos. É desse silêncio inalcançável que somos feitos. Ele é o nosso passado remoto e também nosso futuro acolhedor.
Sugere a poeta, assim, que _ sempre em silêncio _ nos limitemos a contemplar o mundo. “Atenta para a vida simplesmente”, ela escreve. “Encontrarás partidos os caminhos/ Encontrarás desfeitos os recantos/ E diluídas todas as certezas”. Mais do que tudo: “Não acharás palavra para o espanto/ Tampouco o verbo fácil para a beleza”. Diante da vida, as palavras falharão. Serão insuficientes, senão banais. Da própria poesia, o que se deve esperar? A poesia, sugere Denise Emmer, não está nas palavras, mas naquilo que a precede. Nessa grande e silenciosa matéria viva de que somos feitos.

José Castello (18/07/2015)

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