sábado, 25 de julho de 2015

"Se arrastando que nem cobra..."

No último dia 12, a Folha publicou uma belíssima reportagem de Fernando Canzian sobre duas famílias que vivem em Jaboatão dos Guararapes (PE) e são beneficiárias do Bolsa Família. Canzian, que acompanha essas famílias desde 2005, mostrou os contrastes entre o rumo que cada uma delas tomou nesses dez anos.

Canzian produziu também um ótimo vídeo, no qual um senhor diz isto: "...e vai se arrastando que nem cobra inté Deus quiser". Quando ouvi "se arrastando que nem cobra", a minha alma voou para a genial "Procissão" (de Gilberto Gil), cuja letra começa assim: "Olha lá vai passando a procissão / Se arrastando que nem cobra pelo chão / As pessoas que nela vão passando / Acreditam nas coisas lá do céu..."

Chegamos ao xis do problema: o nexo de comparação fechado pela locução "que nem". Isso é típico da língua oral, coloquial, ou frequenta ambientes mais "prestigiados"? Já ouvi muita gente condenar essa expressão, sob o argumento de que é popular, informal, de camadas sociais que não gozam de prestígio etc.

Numa das páginas que se encontram na internet, leem-se estas "explicações" sobre o emprego dessa locução: "A expressão realmente não é correta, mas muitos se expressam dessa forma devido ao linguajar popular..."; "A origem eu não sei, mas eu sei que essa expressão não é correta, e eu faço de tudo para não usá-la, pois é feia e uso 'como'...".

No uso efetivo da língua, essas "explicações" não se confirmam, já que não há brasileiro, culto ou inculto, letrado ou iletrado, que não use a expressão "que nem" sabe Deus quantas vezes por dia.

Mas deixemos isso de lado e passemos para os registros escritos, a começar pelos literários. Os mais importantes dicionários da nossa língua registram a expressão sem nenhuma restrição. Depois de definir "que nem" como "tal qual", "como se fosse", "do mesmo modo que", o "Aurélio" dá dois exemplos de lavra própria ("Bonito que nem um artista" e "Saiu que nem o pai") e este trecho do português Rebelo da Silva, escritor de cuja erudição não se pode duvidar: "As feras, tímidas que nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados".

O célebre dicionário de Caldas Aulete também se vale de Rebelo da Silva: "O erudito fez-lhe vermelho que nem uma romã". O "Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa", da Academia das Ciências de Lisboa, diz que a locução "que nem" indica uma comparação com valor intensivo e dá um exemplo de lavra própria ("Está fresca que nem uma alface") e este, do escritor Aquilino Ribeiro, de cuja erudição também não se pode duvidar: "Estou a vê-la que nem uma coluna na avançada das Propileias". O "Houaiss" não dá exemplo literário, mas registra a expressão sem restrição. Um dos exemplos dessa obra é este: "Estúpido que nem uma galinha".

Talvez se possa dizer que, com valor comparativo, a expressão "que nem" não frequenta com assiduidade o texto formal brasileiro moderno, o que não significa que ela seja errada, inadequada ou isso e aquilo. Como se viu, não lhe faltam registros abonadores, entre os quais vale a pena incluir o da pungente letra de "Procissão", em que a fortíssima imagem da procissão "se arrastando que nem cobra pelo chão" confirma o que diz o dicionário da Academia de Lisboa: "Indica uma comparação com valor intensivo".

E eu acrescento: mais do que intensivo, o valor dessa locução é de forte aproximação com a realidade que se quer transmitir. Não é por acaso que o nome da figura de retórica que há aí é "símile". É isso.


Pasquale Cipro Neto

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