No último dia 12, a Folha publicou uma belíssima reportagem de
Fernando Canzian sobre duas famílias que vivem em Jaboatão dos Guararapes
(PE) e são beneficiárias do Bolsa Família. Canzian, que acompanha essas
famílias desde 2005, mostrou os contrastes entre o rumo que cada uma delas
tomou nesses dez anos.
Canzian produziu também um ótimo
vídeo, no qual um senhor diz isto: "...e vai se arrastando que nem cobra
inté Deus quiser". Quando ouvi "se arrastando que nem cobra", a
minha alma voou para a genial "Procissão" (de Gilberto Gil), cuja
letra começa assim: "Olha lá vai passando a procissão / Se arrastando que
nem cobra pelo chão / As pessoas que nela vão passando / Acreditam nas coisas
lá do céu..."
Chegamos ao xis do problema: o nexo
de comparação fechado pela locução "que nem". Isso é típico da língua
oral, coloquial, ou frequenta ambientes mais "prestigiados"? Já ouvi
muita gente condenar essa expressão, sob o argumento de que é popular,
informal, de camadas sociais que não gozam de prestígio etc.
Numa das páginas que se encontram na
internet, leem-se estas "explicações" sobre o emprego dessa locução:
"A expressão realmente não é correta, mas muitos se expressam dessa forma
devido ao linguajar popular..."; "A origem eu não sei, mas eu sei que
essa expressão não é correta, e eu faço de tudo para não usá-la, pois é feia e
uso 'como'...".
No uso efetivo da língua, essas
"explicações" não se confirmam, já que não há brasileiro, culto ou
inculto, letrado ou iletrado, que não use a expressão "que nem" sabe
Deus quantas vezes por dia.
Mas deixemos isso de lado e passemos
para os registros escritos, a começar pelos literários. Os mais importantes
dicionários da nossa língua registram a expressão sem nenhuma restrição. Depois
de definir "que nem" como "tal qual", "como se
fosse", "do mesmo modo que", o "Aurélio" dá dois exemplos
de lavra própria ("Bonito que nem um artista" e "Saiu que nem o
pai") e este trecho do português Rebelo da Silva, escritor de cuja
erudição não se pode duvidar: "As feras, tímidas que nem cordeiros,
acoutavam-se submissas nos povoados".
O célebre dicionário de Caldas
Aulete também se vale de Rebelo da Silva: "O erudito fez-lhe vermelho que
nem uma romã". O "Dicionário Contemporâneo da Língua
Portuguesa", da Academia das Ciências de Lisboa, diz que a locução
"que nem" indica uma comparação com valor intensivo e dá um exemplo
de lavra própria ("Está fresca que nem uma alface") e este, do
escritor Aquilino Ribeiro, de cuja erudição também não se pode duvidar:
"Estou a vê-la que nem uma coluna na avançada das Propileias". O
"Houaiss" não dá exemplo literário, mas registra a expressão sem
restrição. Um dos exemplos dessa obra é este: "Estúpido que nem uma
galinha".
Talvez se possa dizer que, com valor
comparativo, a expressão "que nem" não frequenta com assiduidade o
texto formal brasileiro moderno, o que não significa que ela seja errada,
inadequada ou isso e aquilo. Como se viu, não lhe faltam registros abonadores,
entre os quais vale a pena incluir o da pungente letra de
"Procissão", em que a fortíssima imagem da procissão "se
arrastando que nem cobra pelo chão" confirma o que diz o dicionário da
Academia de Lisboa: "Indica uma comparação com valor intensivo".
E eu acrescento: mais do que
intensivo, o valor dessa locução é de forte aproximação com a realidade que se
quer transmitir. Não é por acaso que o nome da figura de retórica que há aí é
"símile". É isso.
Pasquale Cipro Neto
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