Em geral considerada uma escritora mística e avessa às coisas do
mundo, Clarice Lispector (1920-1977) _ a voz mais singular que a literatura
brasileira produziu nas últimas décadas _ foi, na verdade, uma sensível
intérprete do real. Quase 40 anos após sua morte, sua obra se conserva como um
poderoso instrumento de interpretação e de interrogação da realidade. Clarice
escrevia para chegar “atrás de detrás do pensamento”. Desconfiava das idéias
feitas, dos lugares comuns e dos consensos. Não confiava na primeira leitura,
exaltada e apressada, que costumamos fazer da realidade. Também não praticava a
ficção com o propósito de espelhar o mundo, mas, ao contrário, de interrogá-lo.
As perguntas que nos deixou valem muito mais do que a maior parte das respostas
impacientes que ainda hoje formulamos para tentar viver.
São muitas as provas de seu engajamento. Escreveu certa vez: “O
escritor não é um ser passivo que se limita a recolher dados da realidade, mas
deve estar no mundo como uma presença ativa, em comunicação com o que o cerca”.
A literatura teria como função promover um desnudamento do real. Um
desmascaramento das crenças e superstições que o encobrem e o desfiguram. A
ficção de Clarice se torna muito útil em um mundo atordoado por um grande
falatório, um mundo excessivo, inquieto e superficial, que se limita a deslizar
_ e a tirar proveito _ sobre a face da verdade. O mundo das pessoas “cheias de
si”, que simulam a posse da verdade. Nele, é útil ouvir as palavras perplexas
da escritora: “Sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para
mim escrever é procurar”. Em vez de achar (de “acreditar”), simplesmente
buscar.
Não aceitar rapidamente a verdade _ eis um ensinamento
insistente de Clarice. Em um mundo enfático e retórico, regido pelos consensos
e pela verdade gritada, apostar nas nuanças, na dúvida, na força da
interrogação. Postar-se diante do real com as mãos vazias e a mente disponível
para o encontro de novos caminhos e de novas perspectivas. Saber esperar que a
verdade – pequena e discreta – finalmente apareça. Clarice chegou a se
interessar intensamente pelo jornalismo. Em uma crônica de 1972, ela escreveu:
“Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua literatura. Guardadas
as devidas e significativas proporções, era isso o que eu ambicionaria para mim
também, se tivesse fôlego”. Unir verdade e delicadeza. Arrancar os segredos
sutis que se escondem atrás da brutalidade dos fatos.
Sua obstinação em chegar ao coração das coisas levou-a a
destinos longínquos. Em uma entrevista ao “Correio da Manhã”, no ano de 1972,
quando a repórter lhe perguntou por que escrevia, respondeu: “Eu fiz essa
pergunta a Alain Robbe-Grillet quando ele veio ao Brasil. Ele me respondeu: _
Escrevo para saber por que escrevo. Minha resposta é diferente: eu escrevo para
entender melhor o mundo. É uma lucidez meio nebulosa, porque a gente não tem
direito consciência dela”. Mas talvez só essa “consciência nebulosa” nos sirva
para interpretar um mundo igualmente complexo e nevoento, que parece avançar
muito mais rápido do que nós.
A tecnologia dá saltos. O desenrolar dos acontecimentos é
atordoante. Nossas mentes parecem pequenas demais para conter o real. Ele nos
perturba e nos oprime com sua estridência. Não se enganem: a literatura de
Clarice não nos oferecerá respostas prontas e imediatas. Tampouco nos trará
afirmações. Estas são, em geral, enganosas e arriscadas. Pouco antes de morrer,
o roqueiro Cazuza declarou ter lido Água viva, um de seus mais densos romances,
111 vezes _ e ainda não tinha chegado ao coração do livro. As respostas que
Clarice oferece _ se é que podemos chamá-las assim _ são muito diferentes de
soluções. Elas se limitam a lançar novas luzes, dissonantes e desconcertantes,
sobre um mundo cada vez mais tenso e contraditório. Daí, provavelmente, a
marginalidade de Clarice Lispector dentro de nosso sistema literário. Uns a
vêem como uma filósofa. Outros, como uma bruxa. Clarice se tornou, na verdade,
uma escritora inclassificável. É difícil aceitar as respostas que Clarice nos
dá. Ela nos ensina que mundo é muito mais difuso, imperfeito e insano do que em
geral consideramos. E que, por isso, devemos sempre pisá-lo com muito cuidado.
“A vida se me é e eu não entendo o que digo”, se lamenta, em
certo momento, sua personagem G. H. Não aceita as ilusões do Eu – cheio de
certezas, de empáfia, de insolência. Acredita que a humanidade está “ensopada
de humanização” _ gêneros, modas, tendências, griffes _ , e isso impede o homem
de chegar a si. A humanidade é risco _ e não retórica. É delicadeza _ e não
intolerância. O homem não pode tudo e, por isso, deve considerar os
limites estreitos de seu saber. Contudo, vivemos em um mundo repleto de “donos
do saber”. Temos um grande temor à imperfeição e à limitação. A literatura de
Clarice nos devolve, assim, o que perdemos em matéria de humildade e de
brandura.
A aceitação da ignorância pode ser muito útil em um mundo no
qual os saberes (e os poderes) se chocam, em busca de uma supremacia absoluta,
na qual todas as divergências seriam anuladas. Diante dessa zoeira, Clarice
propunha, é bem melhor calar-se. A amiga Olga Borelli, em um livro delicado de
memórias, escreveu: “Ela possuía a dignidade do silêncio”. Calar-se, esperar,
escutar _ eis a lição simples, mas dolorosa, que a ficção de Clarice nos
transmite. Atitudes que parecem quase impossíveis em um mundo de falatório
interminável.
Em nosso mundo de prepotência e de violência _ sobretudo verbal
_, cabe pensar na inesquecível Macabea, a protagonista de A hora da estrela,
seu romance de despedida. Uma mulher não só afastada da língua, a que tem um
acesso precário e turbulento, mas, sobretudo, do mundo dos significados
enfáticos e das fórmulas prontas. Das verdades tempestuosas. Seu romance evoca
um antigo provérbio chinês: “Diga-me e esquecerei. Mostre-me e talvez em
lembre. Envolve-me e entenderei”. No lugar da palavra usada como faca, para
rasgar e sangrar, a escuta silenciosa. No lugar do escândalo, a espera. Em um
mundo que tende cada vez mais aos saberes pétreos e aos fundamentalismos, a
leitura de Clarice se torna uma forma salvadora de respiração.
José Castello
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