quarta-feira, 29 de julho de 2015

Clarice e o presente

Em geral considerada uma escritora mística e avessa às coisas do mundo, Clarice Lispector (1920-1977) _ a voz mais singular que a literatura brasileira produziu nas últimas décadas _ foi, na verdade, uma sensível intérprete do real. Quase 40 anos após sua morte, sua obra se conserva como um poderoso instrumento de interpretação e de interrogação da realidade. Clarice escrevia para chegar “atrás de detrás do pensamento”. Desconfiava das idéias feitas, dos lugares comuns e dos consensos. Não confiava na primeira leitura, exaltada e apressada, que costumamos fazer da realidade. Também não praticava a ficção com o propósito de espelhar o mundo, mas, ao contrário, de interrogá-lo. As perguntas que nos deixou valem muito mais do que a maior parte das respostas impacientes que ainda hoje formulamos para tentar viver.
São muitas as provas de seu engajamento. Escreveu certa vez: “O escritor não é um ser passivo que se limita a recolher dados da realidade, mas deve estar no mundo como uma presença ativa, em comunicação com o que o cerca”. A literatura teria como função promover um desnudamento do real. Um desmascaramento das crenças e superstições que o encobrem e o desfiguram. A ficção de Clarice se torna muito útil em um mundo atordoado por um grande falatório, um mundo excessivo, inquieto e superficial, que se limita a deslizar _ e a tirar proveito _ sobre a face da verdade. O mundo das pessoas “cheias de si”, que simulam a posse da verdade. Nele, é útil ouvir as palavras perplexas da escritora: “Sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar”. Em vez de achar (de “acreditar”), simplesmente buscar.
Não aceitar rapidamente a verdade _ eis um ensinamento insistente de Clarice. Em um mundo enfático e retórico, regido pelos consensos e pela verdade gritada, apostar nas nuanças, na dúvida, na força da interrogação. Postar-se diante do real com as mãos vazias e a mente disponível para o encontro de novos caminhos e de novas perspectivas. Saber esperar que a verdade – pequena e discreta – finalmente apareça. Clarice chegou a se interessar intensamente pelo jornalismo. Em uma crônica de 1972, ela escreveu: “Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua literatura. Guardadas as devidas e significativas proporções, era isso o que eu ambicionaria para mim também, se tivesse fôlego”. Unir verdade e delicadeza. Arrancar os segredos sutis que se escondem atrás da brutalidade dos fatos.
Sua obstinação em chegar ao coração das coisas levou-a a destinos longínquos. Em uma entrevista ao “Correio da Manhã”, no ano de 1972, quando a repórter lhe perguntou por que escrevia, respondeu: “Eu fiz essa pergunta a Alain Robbe-Grillet quando ele veio ao Brasil. Ele me respondeu: _ Escrevo para saber por que escrevo. Minha resposta é diferente: eu escrevo para entender melhor o mundo. É uma lucidez meio nebulosa, porque a gente não tem direito consciência dela”. Mas talvez só essa “consciência nebulosa” nos sirva para interpretar um mundo igualmente complexo e nevoento, que parece avançar muito mais rápido do que nós. 
A tecnologia dá saltos. O desenrolar dos acontecimentos é atordoante. Nossas mentes parecem pequenas demais para conter o real. Ele nos perturba e nos oprime com sua estridência. Não se enganem: a literatura de Clarice não nos oferecerá respostas prontas e imediatas. Tampouco nos trará afirmações. Estas são, em geral, enganosas e arriscadas. Pouco antes de morrer, o roqueiro Cazuza declarou ter lido Água viva, um de seus mais densos romances, 111 vezes _ e ainda não tinha chegado ao coração do livro. As respostas que Clarice oferece _ se é que podemos chamá-las assim _ são muito diferentes de soluções. Elas se limitam a lançar novas luzes, dissonantes e desconcertantes, sobre um mundo cada vez mais tenso e contraditório. Daí, provavelmente, a marginalidade de Clarice Lispector dentro de nosso sistema literário. Uns a vêem como uma filósofa. Outros, como uma bruxa. Clarice se tornou, na verdade, uma escritora inclassificável. É difícil aceitar as respostas que Clarice nos dá. Ela nos ensina que mundo é muito mais difuso, imperfeito e insano do que em geral consideramos. E que, por isso, devemos sempre pisá-lo com muito cuidado.
“A vida se me é e eu não entendo o que digo”, se lamenta, em certo momento, sua personagem G. H. Não aceita as ilusões do Eu – cheio de certezas, de empáfia, de insolência. Acredita que a humanidade está “ensopada de humanização” _ gêneros, modas, tendências, griffes _ , e isso impede o homem de chegar a si. A humanidade é risco _ e não retórica. É delicadeza _ e não intolerância.  O homem não pode tudo e, por isso, deve considerar os limites estreitos de seu saber. Contudo, vivemos em um mundo repleto de “donos do saber”. Temos um grande temor à imperfeição e à limitação. A literatura de Clarice nos devolve, assim, o que perdemos em matéria de humildade e de brandura.
A aceitação da ignorância pode ser muito útil em um mundo no qual os saberes (e os poderes) se chocam, em busca de uma supremacia absoluta, na qual todas as divergências seriam anuladas. Diante dessa zoeira, Clarice propunha, é bem melhor calar-se. A amiga Olga Borelli, em um livro delicado de memórias, escreveu: “Ela possuía a dignidade do silêncio”. Calar-se, esperar, escutar _ eis a lição simples, mas dolorosa, que a ficção de Clarice nos transmite. Atitudes que parecem quase impossíveis em um mundo de falatório interminável. 
Em nosso mundo de prepotência e de violência _ sobretudo verbal _, cabe pensar na inesquecível Macabea, a protagonista de A hora da estrela, seu romance de despedida. Uma mulher não só afastada da língua, a que tem um acesso precário e turbulento, mas, sobretudo, do mundo dos significados enfáticos e das fórmulas prontas. Das verdades tempestuosas. Seu romance evoca um antigo provérbio chinês: “Diga-me e esquecerei. Mostre-me e talvez em lembre. Envolve-me e entenderei”. No lugar da palavra usada como faca, para rasgar e sangrar, a escuta silenciosa. No lugar do escândalo, a espera. Em um mundo que tende cada vez mais aos saberes pétreos e aos fundamentalismos, a leitura de Clarice se torna uma forma salvadora de respiração.
José Castello


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