Não à maldade que fazem com o ganso para podermos comer seu fígado gordo. Mas, pensando bem, comer qualquer coisa — salvo, talvez, yogurte natural — é uma barbaridade
Sou solidário com o ganso. Também acho uma barbaridade alimentarem o pobre bicho à força para hipertrofiar seu fígado e produzir o (mmmm) “foie gras”. Desculpe, retiro o “mmmm”. É uma barbaridade.
Mas, se vamos reprovar o que fazem com o ganso, devemos lembrar também o que fazem com outros animais que nos dão de comer. Os métodos para abater bois nos matadouros não são exatamente humanitários.
E o que dizer dos bois mantidos em cativeiro a vida toda, só comendo e crescendo sem sair do lugar, sem ter qualquer vida social, sem conhecer o mundo? A carne excepcionalmente tenra que produzem justifica o sacrifício, mas vá dizer isso ao boi.
E os galetos, galinhas assassinadas antes de chegar à puberdade sem que nenhuma voz se erga contra o infanticídio? E as poedeiras, também condenadas a viver confinadas até morrer, só produzindo ovos, ovos, ovos, sua única razão de ser? Camus escolheu o mito de Sísifo, cuja punição por desafiar os deuses foi passar a vida inteira empurrando uma grande pedra para cima de um morro, só para vê-la rolar morro abaixo quando chegava ao topo, como uma representação do absurdo da existência.
Descontado o ridículo de usar uma galinha poedeira no lugar de Sísifo (perdão, Camus), sua sina é a mesma. Uma vida reduzida a um ovo depois do outro depois do outro. Nenhuma variedade, nenhuma diversão, nenhuma vida sexual, nenhum sentido. Nada. Onde estão os protestos contra a existência absurda das galinhas poedeiras?
Os hortifrutigranjeiros também são coisas vivas, ou eram até chegar no nosso prato. Quem colhe uma fruta ou um vegetal está interrompendo uma vida. Uma colheita, qualquer colheita, não deixa de ser um massacre.
Especula-se sobre como seria se as plantas gritassem e gemessem como gente, na perspectiva de serem arrancadas do seu chão para virar comida. E se as árvores dissessem “Ai, ai, ai” ao som de uma serra elétrica, ou uivassem de dor ao serem cortadas? Imagine uma grande plantação de trigo ou soja rebelando-se e gritando “Não! Não!” à aproximação das colheitadeiras.
Não à maldade que fazem com o ganso para podermos comer seu fígado gordo. Mas, pensando bem, comer qualquer coisa — salvo, talvez, yogurte natural — é uma barbaridade.
Luis Fernando Veríssimo
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