Como não sou biógrafo e nem pretendo ser, não é em causa própria que defendo
a liberdade de um escritor contar a história de uma personalidade pública —
político, artista, jogador de futebol, cientista — sem autorização prévia dele
ou de seus familiares quando ele não está mais aqui. É o que se faz nas grandes
democracias. Só na nossa é que vigora a “biografia autorizada”, um artifício
legal que confere ao biografado ou a seus herdeiros o poder de decidir o que
deve ou não chegar ao leitor.
Assim, no país que lutou tanto para abolir a censura do Estado, pratica-se
nos livros a censura privada, já que, como diz o ex-presidente do Supremo
Tribunal Federal Ayres Brito, liberdade de expressão é “antes de tudo liberdade
de informação”, e a ela tem direito todo cidadão.
Alega-se que é para resguardar a intimidade alheia. Tudo bem, mas essa
dispensa de consentimento antecipado não concede ao autor imunidade, não o
isenta de responsabilidade em casos de informações falsas ou ofensivas à
honra.
Não se trata de um liberou geral. O que se quer evitar é a proliferação da
prática perniciosa de busca e apreensão, ou seja, o recolhimento compulsório de
obras literárias para impedir o acesso de terceiros.
Essa restrição caracteriza-se como censura, e censura de natureza artística é
constitucionalmente vedada sob qualquer disfarce. Outro efeito nocivo é que a
exigência de permissão prévia está criando um “balcão de negócios de valores
vultosos”, conforme denúncia dos editores de livros, que há anos vêm se
movimentando por meio de seu sindicato para derrubar o que consideram ser uma
“ditadura da biografia chapa-branca”.
Eles estão lutando em duas frentes: uma no Congresso, onde tramita um projeto
propondo a modificação do artigo 20 do Código Civil, que permite a apreensão de
biografias não autorizadas. A outra, no STF, no qual ingressaram com uma ação
direta de inconstitucionalidade do tal artigo, com o objetivo de acabar com a
necessidade de autorização prévia.Afinal, a Constituição de 1988 garante, junto
com a liberdade de imprensa e de expressão, o direito à informação.
Com pedido de liminar, a ação foi distribuída à ministra Cármen Lúcia,
abrindo uma perspectiva de luz no fim do túnel. Por sua sensatez, ela costuma
ser chamada de “Carmen lúcida”.
Zuenir Ventura é jornalista.
O Globo
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