Já notaram que se fala muito de “mulher contemporânea” em nossos dias e muito menos em homem contemporâneo? Pois é, as mulheres estão em alta. Vemos uma tendência geral crescente de valorizar o lugar das mulheres na sociedade. Esta tendência nasce das próprias demandas e necessidades das mulheres. Alguns homens capazes de pensar em termos de “reconhecimento” até aderem e defendem as mulheres, sua competência no trabalho, seus direitos em geral. Muitos homens pensam que as mulheres devem ter direitos assegurados como os dos próprios homens. Diria que esse é o “homem” contemporâneo. Um homem que ultrapassou o desejo de dominação. É bom para os próprios homens que pensem assim. Mas é fato que se as próprias mulheres não defendessem seu lugar e seus direitos, eles não fariam nenhum sentido.
Alguém que ainda não analisou a questão historicamente falando pode se perguntar: “por que isso está acontecendo agora?”. Ora, não foi de repente que as mulheres começaram a se ocupar de suas próprias questões e passaram a construir um mundo onde haja espaço para elas. Antes, digamos que há meio século atrás, as mulheres viviam para a família e para seus maridos, correspondiam às expectativas dos homens, hoje elas são muito mais capazes de viver para si mesmas. Mesmo aquelas que escolhem casar e ter filhos não abdicam tão facilmente de si mesmas. Tentam equilibrar trabalho e família.
Pesquisadores dizem que esse desejo de dar conta das duas causas (família e trabalho) é muito brasileiro. Em outros países, ou as mulheres trabalham ou tem filhos. Isso se explica, aliás, pelo fato de que no Brasil, as mulheres da classe média podem contar com o trabalho barato de mulheres de classes menos favorecidas. Na Europa ninguém consegue uma babá senão a preço de ouro. Isso desglamoriza um pouco o sucesso profissional e familiar da mulher brasileira, é verdade. Mas, muito melhor, nos dá o senso de uma verdade que implica a desigualdade de classes. Nenhum feminista que se preze pode esquecer esse fato, sob pena de mistificar as conquistas femininas como se elas não se dessem nos limites dos contextos sociais e históricos.
Mesmo assim, ainda estamos no quadro da valorização das mulheres como era impossível em outras épocas. Esta valorização é evidentemente “autovalorização”. Hoje em dia, quando conhecemos uma mulher que não trabalha fora de casa, que não tem projeto profissional, somos capazes de olhar com estranheza para tal postura. Por mais que em nossa época as pessoas infelizmente vivam sob o jugo do poder do capital, há, na contramão, para as mulheres, uma expectativa de realização pessoal por meio de projetos de vida. Isso, é preciso enfatizar, vale muito mais para as mulheres do que para os homens. Dos homens ainda se espera que sejam provedores, que paguem as contas, que cumpram um papel no campo do poder e da hierarquia. Os poucos surge também a preocupação com a realização do homens. Mas ainda é rara diante da força do papel hierárquico que, a propósito, muitos deles também já não desejam.
O feminismo irônico da mulher contemporânea
Mas é verdade que enquanto o patriarcado põe todo mundo sob seu jugo, uma revolução vem acontecendo, às vezes mais silenciosa, às vezes mais falante. O que chamo de patriarcado é a lógica da “dominação masculina”. Ela não faz bem a ninguém, mas está ainda em voga na violência contra a mulher (seja doméstica, seja na mídia), e também na homofobia. A revolução é há muito tempo o feminismo que cresce como lógica interna da sociedade democrática que exige cada vez mais liberdade de ser e estar.
Essa liberdade de ser e estar é a maior ofensa ao patriarcado que se impõe com todo o peso possível. Um peso que perde terreno se suas “vítimas” se contrapõem a ele em uma luta de vida e morte tal como, tantas vezes, fazem as diversas modalidades de feminismos. Mas o patriarcado é vencido também pelo cansaço, por aquilo que podemos chamar um feminismo irônico. O feminismo irônico não é estressado nem histérico. Ele é divertido. E muitas vezes quieto. Vejamos um exemplo interessante: é muito comum que em uma família as filhas mulheres possam estudar, mas que no fundo, se espera delas que casem com um bom marido e tenham filhos. Nesse campo é que as mulheres muitas vezes surpreendem justamente por que não se esperava muita coisa delas. Elas aproveitam que foram esquecidas e fazem o que querem na vida pessoal e no trabalho. Realizam-se como pessoas e profissionais sem se importar com o que os outros vão pensar. Aproveitam o vão onde não estão sendo observadas e seguem em frente.
Um outro lado da questão que começa a surgir no campo do feminismo irônico que é, ao mesmo tempo, orgânico. Quando as mulheres falam em seu próprio trabalho não esperam apenas pagar contas e fazer sucesso segundo os padrões do capital, mas esperam estar se realizando como seres que são capazes de mudar o seu próprio mundo e o mundo ao seu redor. Tantas artistas, ativistas, empreendedoras sociais existem em nosso tempo que vemos a criatividade como uma marca feminina no campo do trabalho.
Se há alguma diferença no modo de pensar das mulheres que em nossa época surgem em busca de direitos, creio que seja esta. As mulheres querem “ser” algo muito diferente do que os homens foram. Tendo a apostar que a cultura cooperativa e colaborativa tem a ver com esse desejo que nasceu no projeto feminista há 200 anos na forma de luta pelos direitos da “humanidade” como um todo. Humanidade na qual devem estar inclusas todas as pessoas independente de características biológicas ou fenótipos, independentemente de suas escolhas e destinos, inclusive as escolhas e experiências sexuais que hoje em dia vão para além do binômio “mulher” e “homem” e põem em cena a expressão de singularidades diversas.
Pertencer a seu tempo, ser dona de seu próprio tempo
Alguém poderá dizer que essa autovalorização e esse desejo de realização é uma questão de classe social. E que as mulheres de classe média e mais escolarizadas se envolvem com um tipo de liberdade que não é comum entre as classes menos favorecidas. Não é verdade, a tendência de lutas pelos direitos ou a mera consciência de si cresce entre as mulheres em todas as esferas. E é preciso fomentar essa liberdade. Conheço uma moça que é manicure, ou seja, pertence a classe social trabalhadora. Ela é mãe de três garotas jovens, ficou viúva, envolveu-se com outro homem e teve mais um filho. Trabalha muito e cria seus filhos todos. O pai do menino mais novo quer casar com ela. Mas ela não quer casar com ele. E quando pergunto a ela o motivo, ela sempre responde que ela ama a própria solidão, que ela precisa do seu próprio tempo.
Achei revelador ela dizer que precisa de seu próprio tempo.
Conto o exemplo dessa moça de quarenta e poucos anos porque me parece um ótimo caso para pensarmos na descoberta da liberdade de ser e estar. A nossa personagem é uma moça que é do seu tempo por que quer ter seu próprio tempo. A meu ver essa é a característica comum das mulheres contemporâneas. Há ainda muitas mulheres que se submetem ao patriarcado, que tentam agradar não apenas aos homens, mas a toda a moral masculinista, que sonham com um casamento ideal e a maternidade como se este fosse um objetivo de vida. Mas muitas outras já desconstruíram esse paradigma e defendem a liberdade de cada uma a partir da defesa da liberdade pessoal. Por isso, vemos tantas mulheres que ainda querem casar, ter filhos, etc. e outras tantas que não desejam fazer nada disso. Muitas mulheres hoje adoram crianças sem terem se casado, outras tantas casam e optam por não ter filhos. Outras tantas descobrem na homossexualidade uma vida mais feliz.
Todas elas rompem com o padrão de subjugação que sempre fez tantas mulheres infelizes. Isso significa que encontram a liberdade que não pode ser realizada por ninguém, senão por elas mesmas.
Isso significa ser uma mulher contemporânea: ser dona do seu próprio tempo respeitando o tempo de cada uma, respeitando primeiramente a si mesma.
Márcia Tiburi
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