terça-feira, 27 de agosto de 2013

Nudez

Não cantarei amores que não tenho, e, quando tive, nunca celebrei.
 
Não cantarei o riso que não rira e que, se risse, ofertaria a pobres. Minha matéria é o nada.
 
Jamais ousei cantar algo de vida: se o canto sai da boca ensimesmada, é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa, nem sabe a planta o vento que a visita.
 
Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite, mas tão disperso, e vago, tão estranho, que, se regressa a mim que o apascentava, o ouro suposto é nele cobre e estanho, estanho e cobre, e o que não é maleável deixa de ser nobre, nem era amor aquilo que se amava. Nem era dor aquilo que doía: ou dói, agora, quando já se foi?
 
Que dor se sabe dor, e não se extingue? (Não cantarei o mar: que ele se vingue de meu silêncio, nesta concha.) Que sentimento vive, e já prospera cavando em nós a terra necessária para se sepultar à moda austera de quem vive sua morte?
 
Não cantarei o morto: é o próprio canto. E já não sei do espanto, da úmida assombração que vem do norte e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos, ajusta em mim seu terno de lamentos.
 
Não canto, pois não sei, e toda sílaba acaso reunida à sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.Amador de serpentes, minha vida passarei, sobre a relva debruçado, a ver a linha curva que se estende,ou se contrai e atrai, além da pobre área de luz de nossa geometria. Estanho, estanho e cobre, tais meus pecados, quanto mais fugi do que enfim capturei, não mais visando aos alvos imortais. Ó descobrimento retardado pela força de ver. Ó encontro de mim, no meu silêncio, configurado, repleto, numa castaexpressão de temor que se despede. O golfo mais dourado me circunda com apenas cerrar-se uma janela.
 
E já não brinco a luz. E dou notícia estrita do que dorme sob placa de estanho, sonho informe, um lembrar de raízes, ainda menos um calar de serenos desidratados, sublimes ossuários sem ossos; a morte sem os mortos; a perfeita anulação do tempo em tempos vários, essa nudez, enfim, além dos corpos, a modelar campinas no vazio da alma, que é apenas alma, e se dissolve.
 
 
Carlos Drummond de Andrade

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