Diziam os antigos que
nenhum homem é herói para seu criado de quarto. Isso era num tempo em que os
cavalheiros tinham um “valete” que os ajudava a levantar da cama, fazer o asseio
pessoal, vestir-se, tomar o desjejum, e assim por diante. Quem contemplava o
patrão em momentos tão prosaicos não podia jamais ter uma imagem idealizada
dele. Pois digo eu que nenhum escritor é um gênio para seu revisor. Quem revisa
os textos de muitos literatos em voga acaba surpreendendo-os em momentos, deixa
ver como é que eu digo, de incontinência estilística ou de pouca higiene
gramatical. Todo mundo erra. Com a palavra os revisores, copidesques e
tradutores que há por aí.
Isto nada tem a ver com o
fato de que Balzac e Guimarães Rosa viviam em briga permanente com revisores e
tipografias. Ambos gostavam de remendar, na hora de conferir as provas, coisas
que tinham escrito há semanas ou meses. Todo escritor é assim. Rosa era do tipo
que fazia uma “edição definitiva” e poucos anos depois fazia outra, que só
faltava trazer no título a expressão “VALE ESTA”. Quanto à queda-de-braço
pessoal de Rosa com os corretores ortográficos biológicos daquele tempo, poucas
vezes um autor ganhou essa disputa com tanta autoridade. Depois de passado o
choque inicial, deixaram-no escrever como lhe dava na telha.
Todo mundo erra algo. Eu
sou vagaroso para me adaptar às mudanças das reformas gramaticais. Ainda levei
anos escrevendo êle, fôrça, cafèzal. Ainda não sei usar direito o novo hífen,
mas pelo menos já me resignei à perda do trema. Erro muito em regência, porque
todas me parecem ter alguma lógica embutida. Erro em concordância, porque
assimilei um certo linguajar de rua, acho naturais certas formas de escrever que
deixariam um gramático indignado. Digo coisas como “há muitos anos atrás” e não
considero erro. Por outro lado, tenho o costume de pluralizar o verbo: “houveram
bons filmes este ano”, e isso sim, eu considero erro.
Mas discordo da gramática
quando ela diz que “conserta-se sapatos” está errado. Não está não. O “-se” não
é forma reflexiva, é um sujeito abstrato, coletivo, como em “fala-se que ele vai
renunciar”. Fala-se inglês, vende-se revistas, aluga-se carros, solda-se a
oxigênio. Para mim, tudo isto está correto.
Existe o que a gente erra
porque não sabe mesmo, por desinformação, ginásio mal feito. E existem coisas
que usamos meio com segurança e meio na dúvida, porque para nós elas estão numa
zona crepuscular entre o adequado e o inadequado, que são conceitos mais
precisos do que abstrações morais como “certo” e “errado”. Se pra mim fizer
sentido e ao meu ouvido soar bem, eu tendo a achar que está
certo.
Bráulio Tavares
(Mundo fantasmo)
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