É uma das perguntas que nos fazem nas entrevistas: “Para quem o
senhor escreve?...”
Em geral eu corto o nó górdio dizendo que escrevo para mim mesmo
– falo de coisas que me interessam, eu mesmo faço críticas e levanto questões,
eu mesmo procuro dar respostas e expor argumentos. E me dou por sortudo quando
vejo que tem alguém que acaba lendo e gostando.
Quando a gente está publicando num jornal ou revista de grande
circulação, ou para um público muito distante, sempre surge uma dúvida. Deve-se
explicar certos conceitos ou não? Deve-se explicar quem foi Fulano, quem foi
Sicrano? Ou basta dizer o nome? Será que
os leitores vão saber?
Se eu escrevo um artigo para um público em geral posso dizer
algo tipo: “O romance de hoje talvez não precise do excesso de realismo de
Flaubert, e aparenta se contentar com menos”.
Imagino que a maioria dos leitores tenha pelo menos uma idéia
aproximada de que “Flaubert” é Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, grande romancista francês
do século 19.
Mas com um nome menos famoso convém dar pelo menos uma pista: “Por
outro lado, ninguém precisa fazer como Wallace e dedicar duas páginas inteiras
à descrição de um ambiente”.
Dizer “Wallace” não bastaria, se estou de fato me referindo a David
Foster Wallace, o autor de Graça Infinita;
hoje, com Google e tudo o mais, a gente pode citar o nome completo e presumir
que o leitor realmente interessado pode dar uma busca e satisfazer sua curiosidade,
desde que a pista seja suficiente.
Já me reclamaram por escrever referências tipo “o filósofo
alemão Nietzsche”, com o argumento de que “todo mundo sabe que Nietzsche foi um
filósofo alemão, e explicar essas coisas é paternalismo”. Não acho. Pelo menos
no meu público leitor, tem muita gente que não sabe, o que não é nenhum
demérito. Eu não sei quem são metade dos autores que meus amigos citam, e não
me acho burro por isto.
(Raymond Queneau)
O escritor francês Raymond Queneau pegou a certa altura da vida
uma tarefa assombrosa, a de coordenar a Encyclopédie
de la Pléiade, uma coleção gigantesca de informações coletadas sobre todas
as áreas, ampliando em muito a respeitável tradição de Diderot e d’Alembert, os
enciclopedistas do século 18.
Não sei quantos volumes acabaram saindo. O único que tenho é o
volume 1 da Histoire des Littératures,
que inclui as “Littératures anciennes orientales e orales”. São mais de 40
colaboradores, num volume de 1.700 páginas, fazendo resumos de literaturas
nacionais que vão desde a egípcia à bérbere, desde a coreana à bizantina.
A quem se destinavam esses livros?
Num folheto explicativo lançado em 1956 pela Gallimard (editora
da Enciclopédia), ele explica ao
leitor alguns problemas com que se defrontaram:
Analisemos
um por um estes obstáculos. Primeiro, as palavras. Pode ser que um leitor se
incomode caso encontre palavras como periélio, anastomose, estrofóide;
ou, pelo menos, esta é uma suposição plausível por parte do editor. Por sua
vez, o mesmo leitor, o leitor real, reconhecerá de boa vontade que ignora o
significado delas. Por outro lado, pode-se supor que ele sabe o significado de paralelepípedo,
antibiótico ou radar, mesmo que o conhecimento real que se
esconde por trás de cada uma dessas palavras seja com frequência bastante
pobre. Onde fica, então, a linha divisória? É muito difícil de determinar. Supõe-se
que alguém saiba o significado de hexágono, elétron ou célula;
no caso de eclipsóide, mésotron ou gene, já não é tão
óbvio; e com símplex, spin ou neotenia já nos afastamos
bastante da linguagem comum e corrente.
Por essas e outras não custa nada dar, no correr do texto, pelo
menos uma idéia do que a palavra significa naquele momento, até porque pode ser
um neologismo, uma palavra de invenção recente, com que o leitor não se deparou
ainda.
Uma coisa é falar de ficção científica num fanzine que só é lido
pelos aficionados, e outra é republicar o mesmo artigo numa revista de
circulação nacional. Claro que é preciso revisar o que foi escrito, e
contextualizar muitas informações.
O problema é que muitas vezes qualquer autor se sente numa zona
de conforto excessiva, se sente muito à vontade diante do seu público-alvo e
acha que não precisa explicar coisa nenhuma.
Um exemplo disso, dessa camaradagem implícita que acaba
irritando um leitor casual, eu acabei de ver num artigo de Jonathan Lethem na
revista Granta (#86, Summer 2004),
“Two or Three Things I Dunno About Cassavetes”.
(John Cassavetes)
Lethem é um escritor que admiro bastante, escreve FC, escreve
romance fantástico e “mainstream”. Neste texto, ele analisa o cinema de John
Cassavetes, que é mais conhecido como ator (O
Bebê de Rosemary, Os Doze Condenados,
etc.), mas foi um dos mais importantes diretores do cinema independente dos
EUA.
Lethem começa seu artigo descrevendo um casal que entra num
cinema-poeira no centro de uma cidade, numa sessão da tarde, num dia de meio da
semana, com o cinema quase vazio. O casal senta e assiste o filme. E no segundo
parágrafo, Lethem começa a comentar:
Eles
acabam de ver um filme de John Cassavetes. Eu diria que não importa muito saber
que filme foi, mas eu sei que vocês sabem que não me refiro a um dos filmes
ruins dele, um daqueles que a gente evita falar a respeito, aqueles bem do
começo ou bem do final da carreira; ou,
isso mesmo, nem sequer aquele que não é grande coisa, aquele que ele escreveu e
dirigiu, estrelando sua maior atriz, sua esposa, mas que ele não levou muito a
sério, e por falar nisso você também não. O homem e a mulher acabaram de
assistir um dos grandes. Você sabe a que filmes eu me refiro, aqueles que mudam
sua vida. Um que você jamais esquecerá onde estava quando o viu pela primeira
vez ou como foi a sensação de vê-lo, um que fez você ficar pensando “Mas o
que diabo foi isto? Preciso ver isto novamente. Quem é esse tal de Cassavetes?”
Não, eles assistiram aquele de que tanto tinham ouvido falar – aquele sobre a
família, os amigos, os irmãos, os atores, aquele sobre o homem e a mulher. (Trad. BT)
Pois é. Não acho que Lethem deveria ter escrito diferente, o texto é dele; não
acho que deveria ter enchido seu parágrafo com asteriscozinhos explicatórios. Ele
deve ter do público da Granta uma
noção mais veraz do que a minha. Mas esse trecho é um exemplo muito bom de
quanto alguém escreve para seus coleguinhas, aquele texto de fã para fã, cheio
de piscadelas cúmplices, onde se diz só meias palavras porque do outro lado da
folha de papel só tem bons entendedores.
Para quem escrevemos? Eu
diria que cada texto tem um público em mente, e é isso mesmo, tem que ser
assim. O que não impede que de vez em quando a gente se equivoque, como quem
vai de bermuda e havaianas para um jantar da diretoria da empresa, ou de
black-tie para uma arquibancada de futebol.
(Jonathan Lethem)
Mundo Fantasmo
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