Sim, aos poucos estou relendo Machado. E me surpreendendo, pois li Dom Casmurro na adolescência e tinha a memória de um bom livro, mas não a clara noção da autêntica obra-prima que é. Publicado em 1899, o Casmurro é o terceiro da série de 5 grandes romances finais de Machado. Os anteriores são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891) e os seguintes são Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). (De entremeio, também temos o desconhecido Casa Velha, de 1885).
A história é contada na primeira pessoa por Bentinho. Ele é o célebre
narrador não confiável, ainda mais que relata, no tom de uma longa
conversa com leitor, um drama: a dupla traição que teria sofrido por
parte de sua mulher, Capitu (Capitolina) e de seu melhor amigo, Escobar.
O romance começa numa situação posterior
a todos os acontecimentos. Bentinho (Bento Santiago), já velho, conta
ao leitor como recebeu o apelido de Dom Casmurro. A expressão fora
inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de
seus versos. Como Bentinho cochilara durante a leitura, o rapaz ficou
chateado e começou a chamá-lo daquela forma.
O narrador começa então a rememorar sua
existência, o que ele chama de “atar as duas pontas da vida”. O leitor é
apresentado à infância de Bentinho, quando ele vivia com a família num
casarão da rua de Matacavalos.
Bentinho mora com a mãe amorosa, Dona
Glória, o tio Cosme, a mal-humorada prima Justina e o agregado José
Dias, um esplêndido modelo de chato. É uma família bem brasileira,
destas que geram filhos mimados. Sua vida pode ser dividida em três
fases: Bentinho, Dr. Bento Fernandes Santiago e Dom Casmurro.
Bentinho é o menino tímido e sem
iniciativa que provavelmente acabará num seminário e depois padre — pois
era uma promessa de D. Glória tornar seu filho padre. Mas há uma
vizinha, uma vizinha de quintal, um dos maiores personagens da
literatura brasileira, Capitu. Quando a ação começa, ela tem 14 anos e
ele 15.
Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem.
Os dois se apaixonam, prometem que vão
se casar um com o outro haja o que houver, só que a família de Bentinho
quer vê-lo padre. Capitu e Bentinho vão crescendo e não são mais aquelas
duas crianças que brincavam no quintal, a coisa esquenta e eles passam
aos beijos e carícias… As brincadeiras e a rotina dos quintais passam da
infância para o erótico, sempre puxadas por Capitu.
— Sou homem!Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu.
Capitu é linda. Bentinho também arranca
suspiros, mas só tem olhos para ela, que, por sinal, puxa-o com os belos
olhos e o engole.
Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.Ele vai para o seminário, o que se torna uma tortura. Bentinho gosta de mulheres. Certa vez, no caminho para o seminário, vê uma muito bonita cair na rua e…
No seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua mostravam-me agora de relance as ligas azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-taque… Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconjuros e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça.
Ele consegue livrar-se do seminário e casa com Capitu. E então começa uma certa estranheza que apenas aumenta.
A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que o ar de impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também.
E depois eu deixo para você descobrir o que e como acontece.
Mais detalhes, sem spoilers decisivos.
No seminário, ele tinha conhecido Escobar, de quem se tornou
inseparável. Eles tinham tudo em comum, inclusive o plano de sair de lá e
não como padres. Escobar casa-se com Sancha, uma amiga de Capitu. Logo
têm uma filha que recebe o nome de Capitolina… Depois de alguns anos e
após penosas tentativas, Capitu finalmente tem um filho, e o casal pôde
retribuir a homenagem que Escobar e Sancha lhes haviam prestado: o filho
é batizado com o nome de Ezequiel, como Escobar.
Só que Ezequiel vai ficando cada vez
mais parecido com Escobar… E Bentinho desconfia. A temática do ciúme,
abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do
caráter de uma das principais personagens femininas da literatura
brasileira: Capitu.
Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém.
Assim como o enorme afeto e amor entre
Capitu e Bentinho, a história do adultério (?) é composta por poucas
pinceladas. Tudo é meio vago. Machado foi um mestre absoluto e deixa
enorme espaço para nossa imaginação. Ele não apenas conta a história sem
grandes detalhes como deixa para nós discutirmos se houve a traição de
Capitu. Mas Bentinho enxerga no filho a figura do amigo e fica
convencido de que fora traído pela mulher.
Cada um acha uma coisa. Como mais ou menos
escreve Hélio Guimarães no posfácio desta linda edição da Carambaia —
pois escrevo de memória — o livro pode ser sobre um adultério (traiu!),
sobre o ciúme masculino (não traiu!), ou ainda uma denúncia a respeito
do violento comportamento dos homens detentores do poder e da narrativa
(sem dúvida não traiu, seus misóginos!) ou ainda uma gloriosa afirmação e
reivindicação do desejo (pfff, e daí se traiu?).
Carlos Drummond de Andrade dizia que ler
Machado de Assis era uma tentação permanente, quase um vício a ser
combatido. Perguntem a um drogado (ou ex) quão fácil é livrar-se de um
vício.
Milton Ribeiro
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