Clarice,
É com emoção que lhe escrevo pois tudo
o que você propõe tem sempre essa explosão dolorosa. É uma angústia
terrivelmente feminina, dolorosa, abafada, desesperada e guardada.
Ao
ler meu nome, escrito por você, recebi um choque não por vaidade mas
por comunhão. Ando muito deprimida, o que não é comum. Atualmente em São
Paulo se representa de arma no bolso. Polícia nas portas dos teatros.
Telefonemas ameaçam o terror para cada um de nós em nossas casas de
gente de teatro. É o nosso mundo.
E o nosso mundo, Clarice?
Não
este, pelas circunstâncias obrigatoriamente político, polêmico,
contundente. Mas aquele mundo que nos fala Tchecov: onde repousaremos,
onde nos descontrairemos? Ai, Clarice, a nossa geração não o verá.
Quando eu tinha quinze anos pensava alucinadamente que minha geração
desfaria o nó. Nossa geração falhou, numa melancolia de ‘canção sem
palavra’, tão comum no século XIX. O amor no século XX é a justiça
social. E Cristo que nos entenda.
Estamos aprendendo a lição seguinte: amor é ter. Na miséria não está a salvação.
Quem não tem, não dá. Quem tem fome não tem dignidade (Brecht). Clarice, estou pedindo desculpas por este palavratório todo. Mas deixe que eu mantenha com você esta sintonia dolorosa dos que percebem alguns mundos, não apenas este ou aquele, porém até mesmo aquele outro, embora linearmente – como é o caso.
Nossa geração sofre da frustração do repouso. É isso, Clarice? A luta
que fizermos, não faremos pra nós. E temos uma pena enorme de nós por
isso. É assim que explico pra mim estas frases que você põe no seu
artigo: ‘Eu que dei pra mentir. E com isso estou dizendo uma
verdade. Mas mentir já não era sem tempo. Engano a quem devo enganar, e,
como sei que estou enganando, digo por dentro verdades duras.’ A luta, a que me refiro lá no alto, seria aquela luta bíblica, a grande luta, a que engloba tudo.
Voltando
às ‘verdade duras’ de que você fala: na minha profissão o enganar é a
minha verdade. É isso mesmo, Clarice, como profissão. Mas na minha
intimidade toda particular, sinto, sem enganos, que nossa geração está
começando a comungar com a barata. A nossa barata.[18]
Nós sabemos o que significa esta comunhão, Clarice. Juro que não vou
afastá-la de mim, a barata. Eu o farei. Preciso já organicamente
fazê-lo. Dê-me a calma e a luz de um momento de repouso interior, só um
momento.
Com intensa comoção.
Fernanda (Montenegro)
[18] Refere-se ao romance A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964.
–
Fernanda Montenegro ‘Carta’, em “Correspondências”, de Clarice
Lispector.[organização Teresa Montero]. 1ª ed., – Rio de Janeiro: Rocco,
2015.
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