D de Dor, grafite sobre papel sobre uma velha Underwood.
Talvez pudéssemos escrever nossas biografias contando a história de nossas dores. A história impossível de ser contada, como a história dos sonhos, como a história dos sentimentos e afetos. A história da dor poderia ser confundida com a história psicológica das mágoas. Ou com a grande história dos ressentimentos que não deixamos de escrever todos os dias. A dor é física e sobre ela teríamos tanto a dizer, mas a dor é inexprimível e não podemos com ela.
A imagem da dor não expressa a dor. E, no entanto, conseguimos dizer “que dor” diante de muitos fatos. Hoje em dia a lista é infinita e fatos como chacinas, linchamentos, são a própria dor. Quem esquecerá as mãos de Gisele decepadas? O que dizer do homem que as decepou? A dor não acaba porque não se pode dizâ-la. Nem começa nesse indizível. A dor extrema e o extremo do horror que a provoca confluem no horror de não poder dizer a dor. Um horror histórico, social, econômico, racial, patriarcal faz parte de toda dor. Há um apagamento do outro que faz nascer a dor.
Por isso, não se pode escrever sobre a dor para tentar entendê-la ou explicá-la. Só o que podemos em relação à dor é não provocá-la e tentar amenizá-la quando impedi-la foi impossível.
A dor é uma passagem do físico ao simbólico que não deixa espaço para que nada seja dito. A verdade da dor é o horror do mutismo. Mas não podemos nos conformar com ele.
E, no entanto, na miséria da expressão na base de toda expressão, a dor aparece por meio de um grito. O grito instantâneo na hora da dor. O grito que assinala sem dizer. Há dores que não acabam no tempo do grito. A dor sempre foi apavorante e, justamente por isso, questão estética com a qual filósofos se preocuparam de vez em quando. No século 18, vários filósofos escreveram sobre a necessidade de representar a dor. perguntavam qual seria o papel da arte, das tragédias gregas ou modernas. A representação da dor já era problema dos filósofos muito antes daquela época, desde os gregos antigos, na Poética de Aristóteles, por exemplo. Hoje, questiona-se se podemos fotografar a dor dos outros, se as cenas trágicas que vemos na televisão podem ser mostradas sem mais nem menos. Certo é que transformar a dor em mercadoria, seja na arte, seja na televisão, não parece algo justo, porque o sofrimento que está na dor das pessoas é um dado de negatividade que não poderia ser usado como uma coisa positiva. A dor que pertence a cada um é sagrada. Não pode ser profanada na forma de mercadoria. E no entanto, é a todo momento. Mas quem respeitaria a dor do outro até esse ponto radical de esquecer de seus fins mais egoístas?
Cada um conhece a medida de sua dor e ninguém mais. Fácil banalizar ou brincar com a dor dos outros. Schopenhauer falava da compaixão como a capacidade de sentir a dor do outro. Cristão, por sua vez, seria um seguidor de Cristo, alguém que imitasse Cristo que, de braços abertos, encarou a dor, assim como o outro (o próximo e o desconhecido), até a morte.
Na nossa época há poucos cristãos no sentido de estar, como Cristo, de braços abertos ao outro, braços abertos de compaixão. A dor que está na base da religião cristã é apagada todos os dias por muitos cristãos que se entregam à religião como delírio ou grife sem pensar no seu fundo afetivo que é a compaixão.
Nesse contexto, cristão ou não, pensar na dor de si mesmo e na dor dos outros é um desafio para um tempo anestesiado.
Márcia Tiburi
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