A democracia tem suas regras. Candidatos que
se elegem pelo recurso à mentira são implacavelmente punidos com a perda da
legitimidade
“A CPMF é um
imposto cumulativo, regressivo, inflacionário, tem efeito negativo sobre o crescimento
e quem paga é o pobre mesmo”. O diagnóstico, de Delfim Netto, confidente
econômico de Lula nos bons tempos, expressa quase um consenso entre os
economistas. Há razões de sobra, no campo estritamente tributário, para o
Congresso rejeitar a volta do imposto ruim. Contudo, o motivo principal para a
derrubada encontra-se no campo da política.
Primeiro, na
campanha eleitoral, Dilma Rousseff prometeu leite e mel: a continuidade da
política de expansão fiscal que conduziu o país ao limiar da bancarrota. Depois,
na hora do estelionato eleitoral, acenou com uma breve travessia de
austeridade: o ajuste fiscal cirúrgico que seria pilotado pelo mestre dos
mestres, um certo Joaquim Levy. Em seguida, diante do fiasco do ajuste, enviou
ao Congresso um atestado de incompetência absoluta: o Orçamento deficitário que
precipitou a perda do grau de investimento. No fim da linha, acuada pela espada
do impeachment, a presidente lançou-se à aventura da tributação aleatória,
tentando ressuscitar o pior dos impostos. Ela quer o privilégio de tratar os
cidadãos como súditos e o conforto de governar sem fazer escolhas.
A democracia tem
suas regras. Candidatos que se elegem pelo recurso à mentira são
implacavelmente punidos com a perda da legitimidade. A recuperação, sempre improvável,
depende de um gesto dramático de reconhecimento do desvio. No lugar desse
gesto, Dilma preferiu apostar num truque barato de ilusionismo, atribuindo a
crise a imprevisíveis fatores externos (a conjuntura internacional, a seca) e
convocando os serviços de Levy para aplicar um unguento sobre a ferida aberta.
Por alguma razão, ligada à nossa miséria intelectual, obteve ainda período de
graça, na forma de apelos empresariais à unidade política em torno do ajuste
fiscal, que reverberaram nos editoriais da imprensa. Não podia dar certo, como
não deu.
A política
econômica não existe no vácuo ideológico, num compartimento sanitizado e
regulado exclusivamente pelas leis da lógica. O giro anunciado pela ascensão de
Levy dependia, para funcionar, do reconhecimento explícito do fracasso da “nova
matriz econômica” do mandato original — e, portanto, de uma ruptura política
completa com o lulopetismo. A presidente, porém, entregou-se à missão
impossível de enganar o país por uma segunda vez, indicando que a Terra Prometida
situava-se logo além de túnel circunstancial, cuja travessia, penosa mas curta,
demandava apenas o ajuste fiscal. No conto infantil que narrou, Levy cuidaria
da travessia, enquanto Nelson Barbosa, o verdadeiro teórico da “nova matriz
econômica”, aguardaria no banco do passageiro para retomar o volante junto com
os primeiros raios de luz. A nova CPMF nasceu da falência desse projeto, com a
finalidade de vendar os olhos de todos no momento em que o comboio da economia,
descontrolado, desce rumo ao precipício.
Levy, o
“neoliberal”, cumpre a função de tenor no ato final da ópera bufa da “nova
matriz econômica”. Seu ajuste fiscal, inicialmente apresentado como ato
magistral de corte de gastos públicos, revela-se agora, até para os mais
néscios, como aquilo que efetivamente sempre foi: uma derrama tributária mal
disfarçada pela farsa da reforma ministerial. Operando como agente do
lulopetismo, o superministro do Bradesco pretende cobrar dos cidadãos os custos
da irresponsabilidade fiscal de Dilma, de forma a conservar intactos os
alicerces da política econômica que fracassou. A nova CPMF, muralha de proteção
do passado, serve para resistir à exigência de reformas econômicas estruturais
capazes de recompor a produtividade e estimular o investimento privado.
Dilma teve uma
oportunidade derradeira em março, quando cerca de 1,5 milhão de brasileiros
ocuparam as ruas para decretar o fim das ilusões. Naquela ocasião, ela ainda se
salvaria se admitisse que mentiu aos eleitores e, dinamitando as pontes com o
PT, organizasse um governo de crise assentado sobre uma nova política
econômica. Mas a presidente optou pela fidelidade ao lulopetismo e, no fim das
contas, às suas próprias convicções ideológicas. Ela dobrou a dose da mentira,
enredando-se numa teia política cada vez mais intrincada. Hoje, tornou-se refém
dos caciques do PMDB, que dançam uma quadrilha em volta da chave do
impeachment. A proposta de restauração da CPMF surge porque o ajuste fiscal é,
nos apropriados adjetivos de Delfim Netto, “uma fraude, um truque, uma
decepção”. A nova CPMF não passa de um prolongamento da agonia de um governo
prostrado, impotente para tomar decisões estratégicas.
A derrubada da nova
CPMF no Congresso não deve ser vista como uma recusa a encarar a realidade.
Dilma foi eleita, em 2010, sobre uma plataforma política erguida no segundo
mandato de Lula que se articulava em torno do gasto público, do crédito, do
subsídio e do consumo. A farra fiscal do governo converteu-se em bens
eletrônicos e despesas com serviços, investimentos empresariais extravagantes
financiados pelo BNDES, moradias populares de baixa qualidade, importações
insustentáveis, contas subsidiadas de combustíveis e eletricidade. O país
pagará, inevitavelmente, a fatura das escolhas políticas feitas nas urnas. Não
deve, porém, oferecer um cheque em branco à presidente arrogante e impenitente
que ainda simula governar.
“Chega de
impostos”, como se propaga aqui e ali, não é a resposta certa à embriaguez
nacional promovida pelo lulopetismo. Uma travessia fiscal será feita, cedo ou
tarde, por uma combinação equilibrada de cortes de gastos públicos e aumentos
seletivos de impostos. Contudo, a condição para ela só pode ser a decisão
nacional de não repetir a experiência desastrosa do passado recente. O Brasil
precisa, finalmente, olhar para frente. É por esse motivo que os congressistas
têm o dever cívico de derrotar a nova CPMF.
Demétrio
Magnoli é sociólogo
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/razoes-para-derrubar-cpmf-17585955#ixzz3mhwyonNe
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