Aconteceu que o irracional derrotou o racional. O
milênio entre Tales e Proclo incluiu uma recaída grega na superstição e
no misticismo e num embrutecimento da vida civil
No ano de 585 antes de Cristo, Tales, da cidade de Mileto, uma colônia
grega na atual Turquia, predisse que haveria um eclipse do sol — e
acertou. Duzentos anos depois, Aristóteles, diria que naquele momento
nasciam a ciência e a filosofia gregas. Tales chegara à sua previsão não
por poderes mágicos, mas pela observação do movimento dos astros, e o
que ela revelava era que havia uma ordem até então insuspeitada no
cosmo.
Os egípcios já haviam feito um calendário baseado nas fases da Lua mais
de dois mil anos antes de Tales. A novidade da descoberta grega era a
de dar o nome de ciência à curiosidade desenfreada, e a especulações
sobre a origem e o futuro do mundo na ordem cósmica recém-revelada.
Contemporâneos de Tales como Anaximandro e Anaxímenes tinham, cada um,
sua teoria a respeito.
A teoria do próprio Tales era que a origem de tudo era uma única
substancia, a água. Não estava muito longe do que se sabe hoje, que a
vida na Terra começou nos oceanos. De um jeito ou de outro, o eclipse
previsto inaugurou uma nova maneira de pensar, baseada na observação e
na lógica. E influenciou o debate sobre a convivência humana. Afinal, se
a organização do universo era previsível, a organização da polis também
poderia ser, se conduzida racionalmente.
A próxima observação astronômica consequente grega de que se tem
notícia é a do filósofo ateniense Proclo no anno domini 475 — quase mil
anos depois de Tales de Mileto. Não sei o que Proclo descobriu ou
deduziu dos seus astros. O importante não é Proclo, são os mil anos. O
que aconteceu com o que Tales parecia estar inaugurando?
Aconteceu que o irracional derrotou o racional. Os mil anos entre Tales
e Proclo incluíram uma recaída grega na superstição e no misticismo e
num embrutecimento da vida civil, muitas vezes oculto pela exaltação
feita por outros filósofos das supostas virtudes democráticas de uma
sociedade escravocrata em que as mulheres não tinham vez.
Incluíram o começo do Cristianismo e o crescimento do seu poder sobre
vidas e mentes. E incluíram o começo da longa noite medieval, da qual o
mundo só acordou, meio zonzo, com a publicação, em 1543, do “De
revolutionibus” do Copérnico — outros mil anos depois de Proclo.
Às vezes dá para pensar que chegamos perto do racional exemplificado
por Tales e seus contemporâneos — afinal, conseguimos evitar a guerra
nuclear, uma cura para o câncer é iminente e todo dia aparece um sabor
novo de picolé — mas às vezes parece que estamos escorregando para mais
mil anos de obscurantismo e estupidez. Né não?
Luis Fernando Veríssimo
Nenhum comentário:
Postar um comentário