terça-feira, 29 de setembro de 2015

Chuva com Lembranças

Começam a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam, e continuam a pousar, às tontas, de jasmim em jasmim. As pedras estão muito quentes, e cada gôta que cai logo se evapora. Os meninos olham para o céu cinzento, estendem a mão — e vão tratar de outra coisa. (Como desejariam pular em poças dágua! — Mas a chuva não vem...)


Nas terras sêcas, tanta gente, a esta hora, estará procurando também no céu um sinal de chuva! E, nas terras inundadas, quanta gente a suspirar por um raio de sol!


Penso em chuvas de outrora: chuvas matinais, que molham cabelos soltos, que despencam as flôres das cêrcas, entram pelos cadernos escolares e vão apagar a caprichosa caligrafia dos exercícios.


Chuvas de viagens: tempestades na Mantiqueira, quando nem os ponteiros dos pára-brisas dão vencimento à água; quando apenas se avista, recortada na noite, a paisagem súbita e fosfórea mostrada pelos relâmpagos. Catadupas despenhando sôbre Veneza, misturando o céu e os canais numa água única, e transformando o Palácio dos Doges num imenso barco mágico, onde se movem, pelos tetos e paredes, os deuses do paganismo e os santos cristãos. Chuva da Galiléia, salpicando as ruas pobres de Nazaré, regando os campos virentes, toldando o lago de Tiberíades coberto ainda pelo eterno olhar dos Apóstolos. Chuva pontual sôbre os belos campos semeados da França, e na fluida paisagem belga, por onde imensos cavalos sacodem, com displicente orgulho, a dourada crina...


Chuvas antigas, nesta cidade nossa, de perpétuas enchentes: a de 1811, que, com o desabamento de uma parte do morro do Castelo, soterrou várias pessoas, arrastou pontes, destruiu caminhos e causou tal pânico que durante sete dias as igrejas e capelas estiveram abertas, acesas, com os sacerdotes e o povo a implorarem a misericórdia divina. Uma, de 1864, que Vieira Fazenda descreve minuciosamente, com árvores arrancadas, janelas partidas, telhados pelos ares, desastres no mar e “vinte mil Lampiões da iluminação pública completamente inutilizados”.


Chuvas modernas, sem trovoada, sem igrejas em prece, mas com as ruas igualmente transformadas em rios, os barracos a escorregarem pelos morros, barreiras, pedras, telheiros a soterrarem pobre gente. Chuvas que interrompem estradas, estragam lavouras, deixam na miséria aquêles justamente que desejariam a boa rega do céu para a fecundidade de seus campos.


Por enquanto, caem apenas algumas gôtas daqui e dali. Nem as borboletas ainda percebem. Os meninos esperam em vão pelas poças dágua onde pulariam contentes. Tudo é apenas calor e céu cinzento, um céu de pedra onde os sábios e avisados tantas coisas liam outrora:


"São Jerônimo, Santa Bárbara Virgem,


lá no céu está escrito, entre a cruz e a água benta:


Livrai-nos, Senhor, desta tormenta!””

Cecília Meireles


Texto extraído do livro “Quadrante 2 - 4ª Edição (com Biografias)”, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, págs. 48 e 49.

Achou-o numa terra deserta, e num ermo solitário cheio de uivos; cercou-o, instruiu-o, e guardou-o como a menina do seu olho.
Deuteronômio 32:10

E nós conhecemos, e cremos no amor que Deus nos tem. Deus é amor; e quem está em amor está em Deus, e Deus nele.
1 João 4:16

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