Do movimento
O movimento se confunde com o princípio da vida. O que era extasiante
para um filósofo antigo que tentava explicar o princípio do ser,
tornou-se, para nós, coisa corriqueira. Há tempos, sob a lente de um
microscópio observamos a dimensão unicelular da vida a mover-se. Com a
invenção das imagens técnicas, sobretudo da fotografia, tornou-se mais
fácil perceber o movimento inerente ao crescimento de uma planta. A olho
nu, vemos as folhas de uma árvore levadas pelo ar em movimento. Não
vemos o vento, mas o movimento das nuvens provocado por um elemento
físico. A olho nu observamos as circunvoluções de uma pedra na água. Da
água, se sabe que está sempre em movimento, por isso, dizer “água
parada” só faz sentido no âmbito da percepção. Na mesma linha, se
contemplamos a vida dos animais percebemos como se movem, se nadam, se
correm ou voam, como comem, como fazem sexo, como brigam, como brincam.
Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, o movimento é próprio a
todas as coisas que existem.
Podemos dizer que o movimento é um princípio da vida biológica e
também um princípio da vida cultural, a vida dos seres humanos. Nosso
corpo e nossa linguagem (linguagem que só podemos separar de nossos
corpos para efeito de especificação) caracterizam-se pelo mover-se. A
célula particular está em movimento, e todo o nosso corpo, em todos os
seus gestos e atos, do comer ao dançar, do dormir ao trabalhar, do
pensar ao falar, é movimento. A história, por sua vez, poderia ser
contada como uma história dos movimentos no tempo.
Da mobilidade
A questão da mobilidade é ainda mais importante quanto pensamos nas
condições do movimento. Alguém que precisa de uma cadeira de rodas terá
na cadeira uma condição, e nos caminhos pelos quais ela possa passar, a
condição para a condição. Se o movimento se dá no espaço devemos saber
que a administração do espaço modifica o movimento. E vivemos em uma
cultura em que a administração do espaço constitui o poder sobre o
espaço e, desse modo, sobre as condições da mobilidade e, dessa maneira,
sobre os corpos e suas potencialidades no que concerne ao ir e vir.
A questão da mobilidade discutida hoje em dia por muita gente anuncia
uma política do movimento. O direito a mover-se pela cidade, hoje em
dia reivindicado sobretudo por usuários de cadeiras de rodas, é um
direito de todos os corpos. Mas a ordem do movimento que esconde os
direitos determina quem pode, quando e onde pode andar. Por isso, o modo
de manifestar-se politicamente é organizado na forma do que chamamos de
“mobilização”, e à sua forma mais concreta chamamos justamente de
“movimento”.
Dar uma volta
É a partir da questão da mobilidade e do nexo com o manifestar, com o
mobilizar que culminam no movimento político que podemos falar de uma
“Filosofia do rolê”. A questão da mobilidade é solidária à filosofia do
rolê. Na construção de uma crítica política da ordem do movimento
devemos introduzir em filosofia o conceito de “rolê”. Por meio dele é
que podemos abordar a questão prática, ética e política do ir e vir.
Muitas vezes dizemos “dar uma volta”. Quem se entende melhor com a
gíria há tempos diz rolê. Rolê não é apenas uma volta, mas a volta em um
contexto. Há, no rolê, algo de pesquisa. Faz-se um rolê para “ver” como
é. Ao mesmo tempo, que o rolê implica um fazer, diz-se “dar um rolê”.
Como se o rolê não fosse uma mera ação, mas uma doação. No doar próprio
ao rolê, vemos o gesto que, por mais que tenha objetivo investigativo, é
ao mesmo tempo, gratuito. Um ato da ordem do prazer do conhecer. Além
disso, não se dá um rolê sozinho, o rolê implica o grupal. Desse ato
grupal que visa o conhecimento podemos dizer que é o ato filosófico
originário. Os filósofos peripatéticos eram aqueles que buscavam o
conhecimento passeando pela cidade. Lembremos dos gregos. Do mesmo modo,
o rolê se constitui hoje como um ato de passear para conhecer. Nele,
está o olhar do expedicionário que pretende entender um lugar
desconhecido, o olhar do investigador que pretende descobrir as
novidades da natureza e da cultura. Lembremos dos expedicionários de
antigamente coletando plantas, animais, pedras, objetos da natureza que
eram levados para coleções, laboratórios e museus na época em que a
natureza começava a ser reduzida à propriedade privada e à “commoditie”.
Turismo
Em tempos urbanos, o turismo é a redução da viagem à mercadoria. Rolê
comercial, e, como tudo o que é comercial, facilmente autorizado no
âmbito de uma cultura voltada ao consumismo. Visitas de turistas podem
parecer invasões bárbaras para os moradores de cidades muito visitadas
(Roma, Paris, Rio de Janeiro…), mas isso apenas para os moradores que
pensam a partir da lógica de dois pesos e duas medidas: desejam os
lucros do turismo, mas não suas consequências.
Que o movimento das populações seja autorizado é apenas em nome do
turismo enquanto o turismo é a mobilidade reduzida à mercadoria. Atrás
dela fica o abstrato direito de ir e vir. Ao âmbito desse direito
pertence a imigração que é controlada na direção inversa do ato
turístico. No seu caso, o direito estaria acima da forma mercadoria. Mas
em uma cultura do consumo, o que escapa à forma mercadoria, não tem
outro valor e, no extremo, deve ser extirpado.
Rolê, neste sentido, é a qualificação política do ato natural e
cultural de dar uma volta. Ele implica um regime democrático do
deslocamento. No clima de controle das populações, proibir o passeio é
um ato antissocial e antipolítico. Um ato autoritário. Contra esse
autoritarismo, o rolê se ergue como revolta. Passear torna-se uma
atitude afirmativa. Perigosa, no entanto, pois o poder de governar
reduzido à polícia, pode também aviltar, maltratar e matar aquele que
passeia.
Ipanemismo
Uma filosofia do rolê é uma filosofia peripatética. Uma filosofia do
transitar, do transpasseio. Aquele que dá o rolê, vai ao desconhecido e
espera voltar para casa, como Ulisses que, um dia, aventurou-se pelos
mares para retornar à Ítaca. Se o desconhecido é inóspito, natural que
se encontrem monstros neles.
O monstro devorador atual é a burguesia adepta do antigorriquismo ou
do novorriquismo, do madamismo, do leblonismo ou do higienopolismo, com
seus costumes amparados na cafonérrima ideia de “gosto”. Ipanemismo,
para aproveitar ironicamente essa espécie de estilo de vida, pode ser a
sua melhor expressão.
A transformação da cidade, e de todos os seus bairros, em parque temático se deve a essa lógica.
Viver nas cidades implica o direito à cidade. Experimentar o espaço
leva a criar espaço. É porque nos movemos que o espaço está vivo e não
morto. Ipanemismo é o nome atual da redução de um bairro a parque
temático.s
Por fim, nesse contexto em que pensar é cada vez mais necessário, é
bom lembrar de Galileu Galilei que, tendo sido perseguido e preso pela
inquisição, deixou claro para todos que, apesar da disputa entre as
teorias, a verdade era uma só: a terra não estava parada como a igreja
queria que estivesse.
“E pur si muove” ou “E, no entanto, se move” foi o que disse Galileu
depois de ter renegado sua própria teoria, o heliocentrismo, diante dos
padres da igreja.
Que a terra se movesse, era algo insuportável para a igreja daqueles
tempos assim como é insuportável para os burgueses, esses devotos da
igreja do capital, que pessoas com quem não se identificam se movam, vão
e venham, em nossa época.
Mas as pessoas, assim como a terra, continuarão se movendo.
A tarefa histórica é, neste momento, ir aonde não somos chamados e não ir aonde onde querem que estejamos.
Um revolução se anuncia na invasão e na ocupação dos xópins e praias
reservadas indevidamente às classes do capital, das ruas pelo povo, dos
meios de comunicação pelos artistas, do governo pelos cidadãos. Talvez a
partir daí possamos superar o parque temático e voltar a viver no que
poderíamos chamar de cidade.
Márcia Tiburi
Publicado originalmente na Revista Cult
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