terça-feira, 29 de setembro de 2015

Filosofia do rolê

Do movimento

O movimento se confunde com o princípio da vida. O que era extasiante para um filósofo antigo que tentava explicar o princípio do ser, tornou-se, para nós, coisa corriqueira. Há tempos, sob a lente de um microscópio observamos a dimensão unicelular da vida a mover-se. Com a invenção das imagens técnicas, sobretudo da fotografia, tornou-se mais fácil perceber o movimento inerente ao crescimento de uma planta. A olho nu, vemos as folhas de uma árvore levadas pelo ar em movimento. Não vemos o vento, mas o movimento das nuvens provocado por um elemento físico. A olho nu observamos as circunvoluções de uma pedra na água. Da água, se sabe que está sempre em movimento, por isso, dizer “água parada” só faz sentido no âmbito da percepção. Na mesma linha, se contemplamos a vida dos animais percebemos como se movem, se nadam, se correm ou voam, como comem, como fazem sexo, como brigam, como brincam. Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, o movimento é próprio a todas as coisas que existem.

Podemos dizer que o movimento é um princípio da vida biológica e também um princípio da vida cultural, a vida dos seres humanos. Nosso corpo e nossa linguagem (linguagem que só podemos separar de nossos corpos para efeito de especificação) caracterizam-se pelo mover-se. A célula particular está em movimento, e todo o nosso corpo, em todos os seus gestos e atos, do comer ao dançar, do dormir ao trabalhar, do pensar ao falar, é movimento. A história, por sua vez, poderia ser contada como uma história dos movimentos no tempo.

Da mobilidade

A questão da mobilidade é ainda mais importante quanto pensamos nas condições do movimento. Alguém que precisa de uma cadeira de rodas terá na cadeira uma condição, e nos caminhos pelos quais ela possa passar, a condição para a condição. Se o movimento se dá no espaço devemos saber que a administração do espaço modifica o movimento. E vivemos em uma cultura em que a administração do espaço constitui o poder sobre o espaço e, desse modo, sobre as condições da mobilidade e, dessa maneira, sobre os corpos e suas potencialidades no que concerne ao ir e vir.

A questão da mobilidade discutida hoje em dia por muita gente anuncia uma política do movimento. O direito a mover-se pela cidade, hoje em dia reivindicado sobretudo por usuários de cadeiras de rodas, é um direito de todos os corpos. Mas a ordem do movimento que esconde os direitos determina quem pode, quando e onde pode andar. Por isso, o modo de manifestar-se politicamente é organizado na forma do que chamamos de “mobilização”, e à sua forma mais concreta chamamos justamente de “movimento”.

Dar uma volta

É a partir da questão da mobilidade e do nexo com o manifestar, com o mobilizar que culminam no movimento político que podemos falar de uma “Filosofia do rolê”. A questão da mobilidade é solidária à filosofia do rolê. Na construção de uma crítica política da ordem do movimento devemos introduzir em filosofia o conceito de “rolê”. Por meio dele é que podemos abordar a questão prática, ética e política do ir e vir.

Muitas vezes dizemos “dar uma volta”. Quem se entende melhor com a gíria há tempos diz rolê. Rolê não é apenas uma volta, mas a volta em um contexto. Há, no rolê, algo de pesquisa. Faz-se um rolê para “ver” como é. Ao mesmo tempo, que o rolê implica um fazer, diz-se “dar um rolê”. Como se o rolê não fosse uma mera ação, mas uma doação. No doar próprio ao rolê, vemos o gesto que, por mais que tenha objetivo investigativo, é ao mesmo tempo, gratuito. Um ato da ordem do prazer do conhecer. Além disso, não se dá um rolê sozinho, o rolê implica o grupal. Desse ato grupal que visa o conhecimento podemos dizer que é o ato filosófico originário. Os filósofos peripatéticos eram aqueles que buscavam o conhecimento passeando pela cidade. Lembremos dos gregos. Do mesmo modo, o rolê se constitui hoje como um ato de passear para conhecer. Nele, está o olhar do expedicionário que pretende entender um lugar desconhecido, o olhar do investigador que pretende descobrir as novidades da natureza e da cultura. Lembremos dos expedicionários de antigamente coletando plantas, animais, pedras, objetos da natureza que eram levados para coleções, laboratórios e museus na época em que a natureza começava a ser reduzida à propriedade privada e à “commoditie”.

Turismo

Em tempos urbanos, o turismo é a redução da viagem à mercadoria. Rolê comercial, e, como tudo o que é comercial, facilmente autorizado no âmbito de uma cultura voltada ao consumismo. Visitas de turistas podem parecer invasões bárbaras para os moradores de cidades muito visitadas (Roma, Paris, Rio de Janeiro…), mas isso apenas para os moradores que pensam a partir da lógica de dois pesos e duas medidas: desejam os lucros do turismo, mas não suas consequências.

Que o movimento das populações seja autorizado é apenas em nome do turismo enquanto o turismo é a mobilidade reduzida à mercadoria. Atrás dela fica o abstrato direito de ir e vir. Ao âmbito desse direito pertence a imigração que é controlada na direção inversa do ato turístico. No seu caso, o direito estaria acima da forma mercadoria. Mas em uma cultura do consumo, o que escapa à forma mercadoria, não tem outro valor e, no extremo, deve ser extirpado.

Rolê, neste sentido, é a qualificação política do ato natural e cultural de dar uma volta. Ele implica um regime democrático do deslocamento. No clima de controle das populações, proibir o passeio é um ato antissocial e antipolítico. Um ato autoritário. Contra esse autoritarismo, o rolê se ergue como revolta. Passear torna-se uma atitude afirmativa. Perigosa, no entanto, pois o poder de governar reduzido à polícia, pode também aviltar, maltratar e matar aquele que passeia.

Ipanemismo

Uma filosofia do rolê é uma filosofia peripatética. Uma filosofia do transitar, do transpasseio. Aquele que dá o rolê, vai ao desconhecido e espera voltar para casa, como Ulisses que, um dia, aventurou-se pelos mares para retornar à Ítaca. Se o desconhecido é inóspito, natural que se encontrem monstros neles.

O monstro devorador atual é a burguesia adepta do antigorriquismo ou do novorriquismo, do madamismo, do leblonismo ou do higienopolismo, com seus costumes amparados na cafonérrima ideia de “gosto”. Ipanemismo, para aproveitar ironicamente essa espécie de estilo de vida, pode ser a sua melhor expressão.
A transformação da cidade, e de todos os seus bairros, em parque temático se deve a essa lógica.
Viver nas cidades implica o direito à cidade. Experimentar o espaço leva a criar espaço. É porque nos movemos que o espaço está vivo e não morto. Ipanemismo é o nome atual da redução de um bairro a parque temático.s

Por fim, nesse contexto em que pensar é cada vez mais necessário, é bom lembrar de Galileu Galilei que, tendo sido perseguido e preso pela inquisição, deixou claro para todos que, apesar da disputa entre as teorias, a verdade era uma só: a terra não estava parada como a igreja queria que estivesse.

“E pur si muove” ou “E, no entanto, se move” foi o que disse Galileu depois de ter renegado sua própria teoria, o heliocentrismo, diante dos padres da igreja.

Que a terra se movesse, era algo insuportável para a igreja daqueles tempos assim como é insuportável para os burgueses, esses devotos da igreja do capital, que pessoas com quem não se identificam se movam, vão e venham, em nossa época.

Mas as pessoas, assim como a terra, continuarão se movendo.

A tarefa histórica é, neste momento, ir aonde não somos chamados e não ir aonde onde querem que estejamos.
Um revolução se anuncia na invasão e na ocupação dos xópins e praias reservadas indevidamente às classes do capital, das ruas pelo povo, dos meios de comunicação pelos artistas, do governo pelos cidadãos. Talvez a partir daí possamos superar o parque temático e voltar a viver no que poderíamos chamar de cidade.

Márcia Tiburi
Publicado originalmente na Revista Cult

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