Poemas inéditos de Pablo Neruda, que
abarcam um período que vai desde os princípios dos anos 1950 até pouco antes da
morte do poeta, em 1973, reafirmam a tese de que a poesia não é só uma
experiência estética, mas também um instrumento de luta. Lançados em 2014 no
Chile, eles nos chegam agora em Teus pés toco na sombra/ Poemas inéditos,
edição bilíngüe organizada e traduzida por Alexei Bueno (José Olympio).
“Tua obrigação/ é de carvão e fogo,/ tens/ que sujar as mãos/ com óleo
queimado/ como fumaça da caldeira”, dirige-se Neruda aos poetas que ainda
duvidam de que é preciso se sujar _ das tempestades do real e da turbulência
dos sentimentos __ para escrever.
Na era das bienais, das festas
literárias e dos talk shows, os poetas _ cheios de si _ tendem a abandonar esse
elo que os ata ao combate. O modelo contemporâneo é o do poeta clean. É muito
útil, então, o reencontro com Neruda. Sob a imagem do poeta pop do século 21,
que brilha e pontifica, seus versos encontram um sujeito pobre e esquecido, que
a sociedade, muito mais do que enaltecer, ou mesmo fingindo enaltecer,
despreza. Aconselha Neruda aos poetas que o melhor é “esquecer a tua condição/
de esquecido,/ de negro,/ sem esquecer os teus,/ nem a terra”. Para enfrentar
essa segunda e severa realidade que se espreme sob a primeira, glamourosa e
festiva, e numa antecipação visionária do século 21, ele diz ainda:
“endurece-te/ caminha/ pelas pedras agudas/ e regressa”.
No século das facilidades e da
pronta-entrega, na era das aclamações fáceis e também dos rápidos
esquecimentos, Neruda _ o profeta _ nos lega uma advertência contra os riscos
da vaidade. Alguém deixou escrito em sua parede: “Não te envaideças”. Sereno,
tratando de pensar sobre o que o incomoda, ele responde: “Não conheço/ a letra
nem a mão/ de quem escreveu a frase/ na cozinha. Tampouco o convidei./ Entrou
pelo telhado./A quem então/ responder? Ao vento”. E é ao vento _ que leva a
todos os lugares, sem a nada excluir _ que o poeta se dirige: “Escuta-me,
vento./ Desde há muitos anos/ os vaidosos me jogam na cara/ suas próprias e
vazias vaidades”. A frase na parede o adverte de que os poetas não devem se
deixar paralisar pelas palavras alheias. Mas, ao contrário, se concentrar em
sua escrita e apenas nela. O que dela se faz depois (bom ou mau) já não é
problema seu. O problema do poeta é escrever e isso já exige muita coragem.
Neruda se descreve: “em meus sapatos/
em meus velhos/ sapatos deformados/ por meus pés vagabundos,/ a cada cinco anos
faço uma roupa nova,/ minhas gravatas caquéticas/ não se vangloriam”. Lição de
humildade: os poetas não devem se iludir com o brilho fugaz que a tantos, hoje,
embriaga e paralisa. Porque iludir-se com essa luz, despejada por holofotes que
desejam mais apagar do que iluminar, é renunciar à própria poesia que, ao
contrário, é combate e tremor. “No caminho/não fiz/ mais que ninguém,/ talvez
menos que todos”, reconhece. Em Neruda _ como nos poetas mais sábios _ o Eu
poético (que os teóricos destacam com as bocas cheias) e o Eu esfarrapado do
homem que luta para escrever são, no fim das contas, inseparáveis.
Já no século passado, Pablo Neruda
constrói uma crítica do homem moderno que, talvez, tenha se tornado hoje ainda
mais atual. “Agora o homem está ocupado/ e não mira o bosque profundo/ já não
investiga a folhagem,/ nem lhe caem do céu as folhas”. Logo em seguida, em dois
versos radicais, ele resume o que luta para dizer: “está ocupado o homem agora/
ocupado em cavar sua cova”. Afirma Neruda que o homem de hoje se esquece do
mundo para admirar o próprio umbigo. Observa a tudo rapidamente _ “não mira o
bosque profundo” _, contentando-se com o gozo das superfícies e das aparências.
Insiste, sem piedade: “pois estes falecidos mortos/ morreram antes de morrer”.
Sua poesia, ao contrário, se constrói
sobre versos que se interessam pelas coisas. É uma poesia que vê a si mesma não
como adereço, ou acessório exibicionista, mas como instrumento de conquista. O
mundo é doloroso. Viver não é fácil. Também para o poeta, viver é lutar. Só os
esnobes e os falsificadores se esquivam. Insiste: “A neve, o mar, a areia,/
tudo será caminho. Lutaremos”. Fala, então, da tragédia do “poeta torpe”, que
vende a alma para alcançar, a qualquer preço, o sucesso. Em um tempo no qual
tanto se fala de corrupção _ mas sempre exterior, sempre alheia _, pode ser
útil o homem se voltar para si mesmo e enfrentar aquilo em que ele mesmo se
corrompe.
“Eu, poeta torpe como um pato na
terra,/ fui me corrompendo até conceder/ minha orelha superior”. Este poeta sem
alma vive entre o orgulho de si e o terror de não ser amado. “Passei a dar a
mão a todo mundo/ e me deixei telefonar sem frêmitos”. Nesse vazamento, o
inimigo se apodera de seu ser. O poeta se torna, assim, dependente de seu
carrasco. Transforma-se na voz dos outros. Torpe _ porque se encontra
entorpecido, porque abdica de si _, esse poeta contemporâneo vai se tornando, a
cada dia, mais dependente de seus carrascos.
Não: para Neruda a poesia só pode ser
uma afirmação constante da liberdade e da coragem. Coragem de que? Coragem de
ser. O poeta torpe é aquele que engole a própria voz para se entregar à voz do
outro. Torna-se arauto, pregoeiro, porta-voz, astro pop _ não mais poeta. Volta
a insistir Neruda, então, na necessidade que o poeta tem de perseverar na
solidão. Ser apenas ele mesmo _ e isso deve lhe bastar. Pensa nos astronautas,
que se lançam no cosmos em estado de absoluta solidão. Pergunta-se: “Esses dois
homens sós,/ esses primeiros homens/ lá em cima/ o que levaram de nós/
consigo?/ De nós os homens, da Terra?”
A poesia de Neruda é sempre uma
afirmação da Terra e de seus frutos. É ainda a Terra, ou seus fragmentos,
que esses astronautas carregam. É ainda da Terra, e de seus habitantes, que
eles se alimentam. “Algo novo vinha da Terra,/ asas ou calafrio, (...),/ ou
pensamento imprevisto/ ave estranha”. Do mesmo silêncio que envolve os
astronautas solitários, o poeta arranca suas palavras. “Algo flutuava como/ um
vestido de noiva/ por trás das duas naves do espaço”. Era a semente do homem,
sempre a fecundar o vazio e a ensiná-lo a não desistir de lutar.
José Castello
*Enviado pelo amigo Adauto Neto
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