Em 1888, dias antes da assinatura da Lei Áurea, o pai de Lima Barreto, que era funcionário público, chegou em casa e disse ao filho: “A lei da Abolição vai passar no dia dos teus anos.” O que de fato aconteceu (Lima nascera em 13 de maio de 1881). O escritor estava na multidão diante do Paço Imperial, que aos seus olhos tinha a altura de um “sky-scraper” (ainda não tínhamos inventado o termo “arranha-céu”). Viu falar um homem, muito aplaudido, mas não tem certeza se era José do Patrocínio.
Diz ele: “Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com o lenço, vivas... Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação”.
Ele lembra também a missa campal celebrada no Campo de São Cristóvão, quando então viu a princesa imperial mais de perto. Ela lhe pareceu “loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado”. Recentemente circulou nas redes sociais uma foto dessa comemoração em São Cristóvão, onde a princesa aparece cercada de autoridades, e muita gente viu num dos homens à sua volta o rosto de Machado de Assis.
É interessante ver as impressões de um dos nossos primeiros grandes escritores negros sobre este dia. Lima as escreveu num artigo de 1911 (republicado em Um Longo Sonho do Futuro, Graphia, 1993), e diz, com certa candura: “Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos”.
Ele lembra a alegria da criançada no colégio em que estudava, à Rua do Resende: “Com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia. Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: Vou dizer a papai que não quero mais voltar ao colégio. Não somos todos livres?”
As grandes agitações políticas têm esse poder de nos jogar na euforia, quando na verdade temos apenas a ideia mais superficial e enganosa sobre o que de fato está acontecendo. As ilusões passam, mas se a alegria foi grande, a lembrança dela é o que fica. Não se cancelam as alegrias retroativamente.
Bráulio Tavares
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