"Minha tendência é primeiro escrever rascunhos deitada na cama, esticada", revelou a escritora Susan Sontag (1933-2004) na longa entrevista que deu a Jonatham Cott, da revista Rolling Stone, no distante ano de 1979. Quase quarenta anos depois, a íntegra da conversa é lançada enfim no Brasil pela editora Autêntica, com tradução de Rogério Bettoni. "Depois, quando já tenho algo para datilografar, vou para a mesa, sento-me numa cadeira de madeira e faço todo o resto na máquina de escrever", ela continua.
É curioso: para que as primeiras idéias fluam e os primeiros rascunhos se formem, Sontag precisava estar deitada, em posição de completo relaxamento, quase que em estado de desproteção. Só assim, em absoluta entrega às palavras, seus livros começavam a brotar. Mas depois, uma vez recolhidas as primeiras anotações, ela precisava inverter a posição. Já acomodada em uma cadeira _ "de madeira", enfatiza _, em posição de mais domínio e consciência, punha-se a datilografar os textos, isto é, começava a ordená-los, a organizá-los, a fazer suas escolhas definitivas.
A revelação de Sontag confirma, com ênfase, a existência de uma relação secreta _ mas, ao mesmo tempo, explícita _ entre literatura e corpo. É com o corpo, também, que um escritor escreve. É de sua postura, de sua posição, do maior ou menor controle que tem sobre seus moviemntos, que ele tira sua escrita. O repórter Cott confessa a Sontag que ele prefere escrever todo o tempo "numa cadeira bem dura e cheia de coisas espalhadas ao redor". Será que essa posição mais "objetiva" promove, com mais eficiência, o aparecimento do texto jornalístico _ ele também mais objetivo e "duro"?
Escrevo meus textos jornalísticos, quase sempre, em meu escritório, acomodado em minha cadeira acolchoada, mas retilínea. Contudo, há muitos anos prefiro trabalhar nas primeiras versões de meus livros à mão, em cadernos de capa dura _ como se a capa, mais resistente, viesse para sustentar a leveza da escrita. O que Sontag diria se eu tivesse tido a chance de ocupar o lugar de Cott e lhe fazer essa pequena confissão? O que ela realmente significa, de fato, nunca saberei.
"Você não acha que escreveria de maneira diferente se estivesse nu enrolado em veludo?", Sontag provoca seu entrevistador. Rememora, então, algumas lendas da história da intimidade literária. Que Goethe _ "ou talvez Schiller", sua memória falha _ só gostava de escrever com os pés metidos em uma vasilha de água quente. "E Wagner, que só compunha vestido com robes de seda e perfume e insenso no quarto". A lembrança de Wagner me leva a pensar se o escritor não precisa, ele também, transformar-se em um personagem para conseguir escrever. Se não há, no ato da escrita, uma espécie de encenação. Que, em consequência, contamina não só o escritor, mas o próprio narrador. Se a representação não começa no papel, mas antes dele, ou fora dele.
Admite Susan Sontag, ao contrário, que as roupas não influem em sua escrita. Estava sempre de jeans, com um pulôver velhor, calçava tênis, e era assim mesmo que escrevia. Não precisava de um figurino especial, não precisava se travestir para escrever. Animada, recorda ainda de Vladimir Nabokov que só escrevia de pé, diante de um atril (estante de madeira, com apoio reclinado para os livros, usada originalmente nas igrejas). Em vez de cadernos, ele trabalhava apenas em pequenas fichas _ como um burocrata, ou um detetive. Era nessa posição de interrogatório que Nabokov arrancava de si mesmo suas "confissões" literárias.
Ainda pensando em Nabokov, Sontag reflete: "Não consigo me imaginar escrevendo de pé. Mas, nesse sentido, acho que o corpo pode mudar". Essas mudanças físicas, por certo, dependem de outro tipo de mudança: a da relação íntima entre um escritor e seus escritos. Cada novo caminho para a imaginação, uma nova postura _ é possível pensar. Contudo, também nesse aspecto não existem regras. A verdade é que, para um escritor, seu corpo é tão indecifrável, é um mistério tão fugidio quanto sua ficção.
José Castello
(http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/sontag-deitada.html)
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