quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Palavras que dizem nada

Na comunicação dos operadores do Direito entre si e com a sociedade, os ruídos estão aumentando por conta de rebuscamentos, erros de português e excesso de citações. Para muitos, é hora de começar a reescrever essa história.

A simples existência da expressão "falou como um advogado", para indicar o uso de termos considerados difíceis, é sinal da estranheza que a chamada linguagem jurídica causa a quem não é da área. Outro indício de que advogados, juízes e promotores nem sempre têm sido felizes na comunicação é a existência de um vasto anedotário (veja quadro na página ao lado) que, verdadeiro ou não, põe em evidência rebuscamentos, impropriedades na escolha das palavras e equívocos de conceitos. Dá o que pensar, principalmente quando se considera que, entre as várias profissões, a advocacia é uma das que manipulam a língua com maior grau de consciência de sua importância. "A palavra, falada ou escrita, é o principal instrumento de trabalho do advogado", como lembra o lingüista Francisco Savioli, professor aposentado da Universidade de São Paulo, USP. E não se trata de qualquer linguagem, de acordo com outro acadêmico, o juiz Luiz Antonio Rizzatto Nunes, autor de vários livros e professor da Pontifícia Universidade Católica, PUC-SP: "O Direito penetra em todas as esferas e, por isso, sua linguagem é poderosa, interfere na vida das pessoas o tempo todo".

A questão é se essa interferência é compreensível a quem não domina o hermético jargão jurídico. Para o advogado e jornalista Walter Ceneviva, ex-professor da Faculdade de Direito da USP, a resposta é não: "Há um anacronismo brutal. Costumo dizer que o mundo evoluiu a jato e o Direito a tílburi. A linguagem jurídica precisa se compatibilizar com a época atual – ser mais direta, explícita, sem formulações complicadas e, acima de tudo, satisfazendo a necessidade de compreensão dos seus destinatários", diz. O tema transcende a simples questão de estilo, já que o advogado é a voz da sociedade em juízo: "Quando essa voz não traduz adequadamente o que pretende, sua deficiência de comunicação atinge o direito de alguém".

Fora de sintonia.

O assunto desperta o interesse do ex-presidente da OAB SP, João Roberto Egydio Piza Fontes. Ele reconhece que cada atividade tem seus códigos de linguagem, respeitados certos limites: "O que excluo é o rococó, a bobagem. A linguagem jurídica tem de ser acessível, sob pena de que a Justiça não cumpra seu papel social, de contrapeso aos demais poderes da República e de árbitro nos litígios privados". Segundo Piza, o impasse está entre seguir com o modelo corrente, ou ampliá-lo de forma a torná-lo acessível a todos os envolvidos: "Um Poder da República incompreensível aos outros dois Poderes e à população, ou perde a importância, ou vira um hiperpoder", alerta. Por mais filosófica que pareça a discussão, a escolha entre esses dois caminhos é feita no cotidiano – acontece no dia-a-dia do advogado que redige uma petição ou um simples contrato, na elaboração de acórdãos e sentenças, nas aulas da faculdade e na redação das leis.

O rebuscamento e a falta de clareza são de longe os problemas mais apontados nessa babel. "Além de arcaica e feia, a linguagem rebuscada não é boa profissionalmente", destaca o advogado Luiz Olavo Baptista, professor da Faculdade de Direito da USP. "Em nome da tal norma forense, os advogados usam expressões inexistentes e cometem erros grotescos, como dizer que o cliente vai arcar o pagamento." Pior, segundo ele, são os textos escritos em ordem indireta, cheios de frases intercaladas, que dão margem a interpretações equivocadas. "Um autêntico risco para o cliente."

O diagnóstico é confirmado pelo criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes, que enfatiza a necessidade de transformar o Direito em um conhecimento acessível a toda a sociedade, para que o homem médio não fique privado de algo indispensável à sua sobrevivência: o conhecimento da lei. "Há muito tempo não escrevo difícil. Alguns pensam que é porque não estudo mais. Só que estudei o bastante para, hoje, conseguir simplificar", explica Paulo Sérgio.

O juiz Marco Antônio Nahum, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCRIM, confirma que várias das peças que recebe são longos discursos sem substância e que, muitas vezes, já precisou recorrer ao dicionário. "Não há mais espaço para a falta de objetividade. O principal fenômeno da globalização é a rapidez do fato, as pessoas acostumaram-se a essa dinâmica. A eficiência do júri, por exemplo, está no convencimento, na comunicação, e o estilo rococó torna tudo incompreensível", afirma Nahum.

A preocupação é compartilhada por Piza, que ilustra os efeitos dessa incompreensão com uma história que aconteceu em seu escritório. "Um cliente nos procurou com um problema criminal e perguntamos se ele era primário. A resposta foi: tive um processo, mas fui absolvido com sursis. Ou seja, o juiz e o advogado não lhe explicaram a sentença e ele não sabia, até então, o que era sursis." De acordo com Piza, ao persistir com expressões em latim, o Direito prioriza a linguagem técnica, mas não escapa do empobrecimento geral da linguagem e, mais grave ainda, da falta de compreensão apurada da lógica. As deficiências, segundo ele, não estão apenas nas petições de advogados mal formados. Multiplicam-se em sentenças, acórdãos e na redação das leis. Outro prejuízo é o aumento da morosidade do processo judicial. "Os embargos de declaração, que tratam da obscuridade do texto jurídico, têm sido cada vez mais freqüentes", constata.

Seria cômico, se não fosse verdade.

Circulando pela internet, nos jornais e no boca-a-boca dos fóruns e escritórios, sobram histórias em que advogados, juízes e outros agentes da Justiça protagonizam passagens que parecem piada, pelas impropriedades e erros grosseiros nos textos e falas. Conheça algumas pérolas.

"Peço trancação penal" – Candidato, em Exame da Ordem, solicitando trancamento de ação penal.

"Diploma do anonimato e conclave assemblear" – Expressões já usadas por advogados para designar a Lei das Sociedades Anônimas e a assembléia de acionistas.

"Ordem de vocação hereditária é quando o filho segue a mesma profissão do pai, ou seja, filho de peixe, peixinho é" – Candidato, em Exame da Ordem, ignorando que a expressão refere-se à ordem dos herdeiros na sucessão.
"Arquive-se esta execução, porque o exequente foi executado (a bala) pelo devedor" – Despacho judicial, em Comarca do Mato Grosso.

"Para que não venha alegar cerceamento de Direito, venha, em 48 horas improrrogáveis, nova, correta e definitiva emenda inicial, eis que o de cujus encontra-se nos céus ou nos purgatórios, ou ainda nos infernos, não dispondo o Juízo de dons mediúnicos para convocá-lo à resposta" – Despacho de juiz em processo no qual o advogado requeria citação pessoal do de cujus, em Santo André, SP.

"Na realidade, Cortez nada mais lhe fez (à vítima) do que uma cortesia" – Parecer de um procurador de Justiça em processo de estupro, com acusado chamado Cortez.

"Um crucifixo em madeira, estilo country-colonial, marca INRI, sem número de série" – Avaliação feita por oficial de Justiça.

"Estribado no escólio do saudoso mestre baiano, o pedido contido na exordial não logrou agasalho" – Escrito por um estudante de Direito, significa que, com base em citação de Orlando Gomes, a petição inicial não foi aceita pelo juiz.

"O material é imprestável, mas pode ser utilizado" – Descrição de bens para penhora em execução.

"Os anexos seguem em separado" – Em termo de encerramento de laudo judicial de um processo em Vara Cível do Fórum João Mendes, em São Paulo.


 
Suzana Lakatos

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