Critica-se por aí a falta de limite das crianças. Reclama-se dos adolescentes criados sem limites. No quarto escuro do caos, esperamos que a luz do limite venha por a bagunça em ordem. Nem adultos escapam da exigência geral. Impõe-se leis rígidas contra o consumo do álcool, fecham-se as casas de jogo, grita-se contra as drogas. Um submundo de tensões mais clandestinas aqui, menos ali, atrapalha a expectativa de um mundo ordenado. Tudo o que se diz contra os excessos destrutivos é em nome de limites.
De tanto gritar limites ficamos surdos para nossos próprios gritos. Onde foi parar o bom-senso é questão que é preciso retomar. Quem pára pra pensar no porquê de tantas imposições? A rigidez das atitudes é a resposta fácil no desespero. O desespero é o descaminho que se explica pela falta de limites e pela tentativa de criá-los, a cada vez, pela força. É o limite que ficou sem limite. A excessiva proibição nos torna incompetentes para a vida.
Onde estão os limites?
Para muitos basta dar “limites” para realizar uma boa educação. Como se a experiência do limite sozinha pudesse ser a salvação para alguém que se perdeu. Um não dito em tom solene aqui, ou acolá, e estaria feita a mágica. Sabemos que não funciona assim. Professores contam com soluções vindas de casa. Pais desatentos ou ocupados esperam que os limites sejam produzidos na escola como se encontrar o “limite” fosse tarefa da educação formal. Nem uma coisa nem outra. Parece que o limite tornou-se uma palavra mágica a carregar a culpa para o lado oposto onde cada um está. A tarefa de dar limite é uma das tantas que esperamos dos outros. Todos sabemos que ela dá muito trabalho. Muitas vezes nem sabemos, os responsáveis, do que se trata. Mas no fundo, talvez a preguiça de agir demonstre mais do que cansaço ou descaso. Talvez não confiemos na possibilidade de que um limite seja a resposta para nossos problemas na educação, nos relacionamentos, pois nós mesmos não nos damos limites. Somos auto-indulgentes, auto-piedosos, sempre prontos a perdoar as nossas falhas. A revolta contra as leis é sinal de que não vemos vantagem dos limites para nós mesmos. A culpa – e o problema – é dos outros.
Limite para tudo.
Os filósofos antigos usavam o termo “peras” para expressar os limites. Tanto nos pré-socráticos, quanto em Platão e Aristóteles, este conceito tinha uma função metafísica, ou seja, servia para explicar como as coisas existiam, porque elas eram o que eram e não diferentes. Por exemplo, Aristóteles dizia que qualquer coisa não existe para além do limite. Tudo o que existe precisava de um limite para existir. Para saber o que algo é e onde está se usa a noção do limite. Limite é sinônimo de forma. Afinal não podemos saber o que é uma casa se não reconhecemos seus limites concretos, arquiteturais, que são, afinal, formais. Até a beleza era entendida como uma espécie de limite. Se pensarmos bem, toda a nossa forma de ver o mundo, de pensar, de entender as coisas, depende deste conceito.
Em termos éticos, aparentemente menos abstratos para a nossa mentalidade atual, os antigos entendiam o limite como auto-domínio, capacidade de controlar as próprias paixões (mais tarde chamadas de pecados), de viver no meio-termo. Limite era tudo que tanto impedia como possibilitaria movimentos. Qualquer ação dependea de limites no espaço e no tempo. Mas também dos limites externos ou internos de que agia.
Respeito ilimitado.
Todo limite é uma experiência que se formula na relação com o outro. Entre eu e o outro há sempre um espaço imponderável. Neste vazio entre “eu e tu” a melhor coisa a ser colocada é o respeito. Se o limite é a experiência que permite saber até onde se pode chegar e, com sorte, a protetora dor de saber aonde não se deve ir, o respeito é a única de todas as experiência que não pode ter limite. Por que respeito é o modo de olhar para o outro como algo positivo, ver nele sua potência de ser, como alguém que, mesmo me sendo próximo, carrega em si algo que não pode dizer sobre si mesmo para mim, e, por isso mesmo, sempre será intocável.
Nenhum respeito.
A total ausência de respeito pelo outro é o que caracteriza a figura do perverso. O perverso é aquele que, por algum motivo que apenas pode ser ponderado caso a caso, rompeu com o limite. Ele vive da crença de que é capaz de submeter o outro. No entanto, mesmo quando destrói o outro, não deixa de enganar a si mesmo. Ele vive da crença de que tomou posse de sua vítima, mas é apenas uma crença e, como tal, não se sustenta na negação de quem não crê. A crença é sustentável apenas enquanto a vítima sustenta a posição do perverso. Em momento algum, no entanto, ele atingirá o âmago da outra pessoa. O perverso é um eterno logrado. Um frustrado que ilude o outro pelo medo. Quem se deixa levar é também iludido. E frustrado porque é impossível atingir o fundo irreconhecível de cada pessoa. Aquilo que justifica que somos seres humanos e que podemos sempre chamar de dignidade. Só esta convicção pode aniquilar um olhar e uma atitude perversas. Limite é, no fundo, o lugar intangível de cada um.
Marcia Tiburi
Publicado em Vida Simples em 2008
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