A peça Ricardo II é a única obra dramática de Shakespeare a retratar a deposição de um rei, como também, ao que se sabe, foi a única que foi certa vez encenada, supõe-se que pelo próprio Shakespeare - ainda que sem sua ciência, para estimular um golpe de Estado.
"Vivo de pão, como vós; como vós sinto necessidades, saboreio a dor, necessito de amigos. Sendo pois escravo disso tudo dizei-me que sou rei?" Shakespeare, Ricardo II (ato III, cena II)
A fortaleza de um rei.
Ouvindo um comentário fortuito, feito ao acaso pelo jardineiro do castelo, é que a rainha soube que seu marido, o rei Ricardo II da Inglaterra, até então em campanha para sufocar a rebelião do seu primo Bolingbroke, lutava numa causa perdida. Dizia o homem ao seu auxiliar que o rei pecara por um lado em não ter podado a tempo os brotos atrevidos que, aqui e ali, afloravam no reino, e que por outro lado não amparara os seus mais fiéis seguidores.
Foi a esse estratagema cênico, recorrendo à metáforas herbáceas, que Shakespeare comunicava ao público do teatro Globe, de Londres, que um rei estava em vésperas de ser deposto. Simultaneamente enriquecia com sua poderosa imaginação a teoria política, associando, em várias passagens e belos exemplos, o poder do rei ao poder virilizador da natureza. Da mesma forma que um carvalho dava imponência à paisagem ao seu redor, um monarca fortalecido dava ânimo e segurança a toda a sociedade.
Nem caridoso nem generoso.
Ricardo II, porém, fracassou não por não ter seguido o hipotético conselho do seu astuto jardineiro, mas por ter claramente infringido o que se considerava nos tempos medievais as bases de um bom governo: ser caridoso para com os pobres que estão abaixo dele e generoso para com os nobres que estão ao seu redor. Ricardo II não só permitiu que seus tutores acumulassem o povo de tributos, provocando assim indiretamente a revolta camponesa, liderada por Wat Tyler (pacificada em 1381), como expropriou os bens de um tio seu, o moribundo John de Gantes. Anteriormente banira-lhe o filho, o primo Bolingbroke, que além de exilado ficou sem fortuna.
Chamando a si mesmo de Sol do reino, Ricardo II embebera-se da idéia que fazia do soberano uma figura intocável que, em caso de perigo extremo, sempre teria a sua disposição tropas de anjos celestiais. Essa divinização do poder e sua associação com as forças sobrenaturais fizera com que ele enfatizasse que sua autoridade tinha aval divino e que "nem toda a água do mar irritada e rugidora" e nenhum humano poderia apagar o "óleo santo de um rei ungido".
A rebelião do primo.
O desespero dele vai crescendo quando, ao retornar de uma campanha militar na Irlanda, depara-se com um quadro de franca rebeldia. Chocou-se quando a realidade não correspondeu aos delírios de um poder divinizado. Seu primo Bolingbroke havia desembarcado numa praia inglesa e, com o apoio de inúmeros nobres, marchava contra ele.
Ricardo II, decepcionado, vai então, passo a passo, despindo-se do figurino divino que ele imaginava imantá-lo, convertendo-se num personagem humano, frágil e trágico. Percebe que se nele vive o sagrado, a majestade do cargo coabita com um corpo perecível, sujeito ao comezinho, ao mortal, envolvido por vileza, traição e covardia.
A coroa é um poço.
Sitiado de todos os lados, abandonado como Cristo no credo, só lhe resta transmitir a coroa ao vitorioso. É um dos momentos altos da peça quando Ricardo II despe-se dos seus aparamentos, retira o seu manto e estende a coroa ao primo vitorioso. Compara-a, a coroa, a um profundo poço. Lá em cima está um recipiente pronto a aureolar o novo rei, lá embaixo um outro, afundado nas lágrimas do infortúnio da deposição. Levado preso para o castelo de Pontefract, no interior da Inglaterra, termina morrendo por maus tratos ou assassinado por um favorito do novo rei. Esse acontecimento histórico por sua vez, ocorrido em 1399, iria desencadear a Guerra dos Trinta Anos entre as duas famílias reais, a os Lancaster e a dos York, também conhecida como a Guerra das Duas Rosas, a rosa vermelha de Lancaster contra a rosa branca dos York.
Essa peça que estreou em 1595 e continua até hoje como a melhor exposição das idéias de Shakespeare e do seu tempo sobre a monarquia. A concepção dos "dois corpos do rei" - o divino e o profano - que ele exaustivamente expõe ao longo da sucessão dos atos, fez sucesso entre os estudiosos da ciência política e inspirou a obra de Ernst H. Kantorowitz no seu formidável estudo sobre as relações da teologia com o poder na Idade Média. The King's Two Bodies - A Study in Medieval Political Theology, (Os dois corpos do rei - um estudo na teologia política medieval, 1957).
A peça e o golpe de Essex
O mais interessante na história dessa montagem é que ela quase se tornou realidade, pois inspirou um golpe palaciano contra a rainha Isabel I. O Conde de Essex, um aventureiro que fora um dos seus favoritos, e que depois de desprezado pensava em destroná-la, planejou uma rebelião em Londres contra a soberana. Para tanto, para se inspirarem e tomarem coragem para o gesto ousado e temerário, os conspiradores teriam arranjado uma apresentação especial no teatro Globe do Ricardo II de Shakespeare. Dali, depois da encenação, estimulados, esperavam tomar de assalto o poder. Essex já se imaginava no papel do vitorioso Bolingbroke, e à Isabel I caberia, é claro, o papel do timorato Ricardo II, o rei perdido.
A conspiração de 1601 fracassou miseravelmente e quem foi parar no cepo foi o pescoço de Essex. Isabel I, tal como seu pai Henrique VIII, não economizava sangue alheio para defender o trono.
No caudaloso processo que se seguiu, os artistas foram citados como cúmplices do lorde sedicioso mas conseguiram provar que interpretaram coagidos pela gente de Essex. Foi uma das raras vezes na História, pelo menos que se saiba, em que se pensou usar uma peça de teatro como aríete para um golpe de Estado.
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2 comentários:
mm
O QUE DIZER DE UM CARA QUE PASSOU MAIS DE 30 ANOS NO PODER E DEIXA METADE DA POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DA POBREZA E SAI PELA PORTA DOS FUNDOS COM 70 BI :(
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