quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Minhas canções: Miragem do Porto

Nas músicas em parceria existe um consenso meio equivocado de que o parceiro “A” faz a letra e o parceiro “B” faz a música. Isso até acontece, mas está longe de ser uma regra.

Muitas das minhas canções com Lenine foram feitas assim, mas muitas outras foram feitas “tudo ao mesmo tempo agora”. Uma sala, duas poltronas, dois violões, duas canetas, duas folhas de papel. Todos dois tocando, cantarolando, rabiscando, procurando rimas, experimentando acordes, treinando levadas, anotando ideias, ao longo de horas. Geralmente com o apoio de garrafas térmicas cheias de uma poção mágica chamada café.

O fato de que Lenine é um excelente letrista e de que eu consigo me virar tocando violão faz com que as músicas muitas vezes sejam na base do “eu fiz 80% da letra e ele fez 80% da música”.

Mesmo assim, há muitas parcerias nossas que sou incapaz de tocar e cantar sozinho, porque apesar de ter dado ideias para a melodia não consigo tocar no violão. Faltam duas coisas que meus parceiros geralmente têm mais do que eu: repertório harmônico na mão esquerda e precisão rítmica na mão direita.

“Miragem do Porto” surgiu de uma toada lenta que Lenine havia composto por encomenda para um trabalho qualquer, não lembro se era a trilha para algum trabalho de TV. Como ele usou uma toada de sextilhas, sugeriu que a gente desenvolvesse mais versos, até pelo fato de que as toadas de sextilhas dos cantadores de viola são melodias anônimas, de domínio público.

Eu peguei os versos que ele tinha feito, ajeitei uma rima aqui, uma palavra ali, e saiu a primeira estrofe, a que fala no navio perdido no oceano.

Para a coisa não ficar repetitiva, usando a mesma melodia (algo que eu faço nas minhas músicas sozinho, que seguem o modelo folk de “mesma música com outra letra”), ele pegou a toada da gemedeira, que é uma sextilha com melodia diferente e o refrão lamentoso “ai ai, ui ui” antes do verso final. E veio assim a estrofe da ilha deserta.

É uma história de amor que não dá certo – o navio que não consegue chegar num porto, e a ilha “onde ninguém quer chegar”.

E aí a gente sentiu que precisava partir para algo diferente, que fosse ao mesmo tempo uma segunda parte e um refrão, sintetizando a ideia. E me veio o trecho de “Ê, lá no mar / eu vi uma maravilha...”, onde ele completou a letra.

Eu chamo isso o “sistema Lennon-McCartney” de compor: um faz a primeira parte da música, o outro faz a segunda. Era assim que os Beatles criavam, e entre muitos autores acho que Ian MacDonald, em Revolution In The Head, é o que melhor descreve esse processo.

John e Paul assinavam juntos mas muitas canções eram 100% de um ou de outro. Raramente um deles entregava uma letra pronta para ser musicada pelo outro, ou uma melodia para ser “letrada”. Muitas vezes, usavam o sistema do “eu faço uma parte, você faz a outra”.

MacDonald analisa exemplos bem claros. Como “We Can Work It Out”, onde Paul fez a parte “Try to see it my way...” e Lennon a parte central de “Life is very short…”.  O caso mais famoso é o de “A Day In The Life”, onde Lennon fez sozinho toda a parte do “I read the news today, oh boy”, e McCartney fez o “Woke up, fell out of bed...”.

Lançada por Elba Ramalho no álbum Encanto (1992),“Miragem do Porto” foi composta nos últimos meses de 1988. Lembro bem disso porque depois da canção estar pronta houve no reveillon carioca o famoso acidente com o “Bateau Mouche”, onde morreram várias pessoas. E eu ficava pensando nos versos, de início tão abstratos: “Quem vai lá no mar bravio não sabe o que vai achar...”.




(BT & Lenine)

Eu sou aquele navio
no mar sem rumo e sem dono
tenho a miragem do porto
pra reconfortar meu sono
e flutuar sobre as águas
na maré do abandono.

Ê, lá no mar
eu vi uma maravilha
vi o rosto de uma ilha
numa noite de luar...
Êta luar, lumiou o meu navio
quem vai lá no mar bravio
não sabe o que vai achar...

E sou a ilha deserta
onde ninguém quer chegar
lendo a rota das estrelas
na imensidão do mar
chorando por um navio
ai, ai, ui, ui
que passou sem lhe avistar.

Ê, lá no mar
eu vi uma maravilha
vi o rosto de uma ilha
numa noite de luar...
Êta luar, lumiou o meu navio
quem vai lá no mar bravio
não sabe o que vai achar...
 
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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