Nas músicas em parceria existe um consenso meio
equivocado de que o parceiro “A” faz a letra e o parceiro “B” faz a música.
Isso até acontece, mas está longe de ser uma regra.
Muitas das minhas canções com Lenine foram feitas assim,
mas muitas outras foram feitas “tudo ao mesmo tempo agora”. Uma sala, duas
poltronas, dois violões, duas canetas, duas folhas de papel. Todos dois
tocando, cantarolando, rabiscando, procurando rimas, experimentando acordes,
treinando levadas, anotando ideias, ao longo de horas. Geralmente com o apoio de
garrafas térmicas cheias de uma poção mágica chamada café.
O fato de que Lenine é um excelente letrista e de que eu
consigo me virar tocando violão faz com que as músicas muitas vezes sejam na
base do “eu fiz 80% da letra e ele fez 80% da música”.
Mesmo assim, há muitas parcerias nossas que sou incapaz
de tocar e cantar sozinho, porque apesar de ter dado ideias para a melodia não
consigo tocar no violão. Faltam duas coisas que meus parceiros geralmente têm
mais do que eu: repertório harmônico na mão esquerda e precisão rítmica na mão
direita.
“Miragem do Porto” surgiu de uma toada lenta que Lenine
havia composto por encomenda para um trabalho qualquer, não lembro se era a
trilha para algum trabalho de TV. Como ele usou uma toada de sextilhas, sugeriu
que a gente desenvolvesse mais versos, até pelo fato de que as toadas de
sextilhas dos cantadores de viola são melodias anônimas, de domínio público.
Eu peguei os versos que ele tinha feito, ajeitei uma rima
aqui, uma palavra ali, e saiu a primeira estrofe, a que fala no navio perdido
no oceano.
Para a coisa não ficar repetitiva, usando a mesma melodia
(algo que eu faço nas minhas músicas sozinho, que seguem o modelo folk de “mesma música com outra letra”),
ele pegou a toada da gemedeira, que é uma sextilha com melodia diferente e o
refrão lamentoso “ai ai, ui ui” antes do verso final. E veio assim a estrofe da
ilha deserta.
É uma história de amor que não dá certo – o navio que não
consegue chegar num porto, e a ilha “onde ninguém quer chegar”.
E aí a gente sentiu que precisava partir para algo
diferente, que fosse ao mesmo tempo uma segunda parte e um refrão, sintetizando
a ideia. E me veio o trecho de “Ê, lá no mar / eu vi uma maravilha...”, onde
ele completou a letra.
Eu chamo isso o “sistema Lennon-McCartney” de compor: um
faz a primeira parte da música, o outro faz a segunda. Era assim que os Beatles
criavam, e entre muitos autores acho que Ian MacDonald, em Revolution In The Head, é o que melhor descreve esse processo.
John e Paul assinavam juntos mas muitas canções eram 100%
de um ou de outro. Raramente um deles entregava uma letra pronta para ser
musicada pelo outro, ou uma melodia para ser “letrada”. Muitas vezes, usavam o
sistema do “eu faço uma parte, você faz a outra”.
MacDonald analisa exemplos bem claros. Como “We Can Work It Out”, onde Paul fez a
parte “Try to see it my way...” e Lennon a parte central de “Life is very
short…”. O caso mais famoso é o de “A
Day In The Life”, onde Lennon fez sozinho toda a parte do “I read the news
today, oh boy”, e McCartney fez o “Woke up, fell out of bed...”.
Lançada
por Elba Ramalho no álbum Encanto
(1992),“Miragem do Porto” foi composta nos últimos meses de
1988. Lembro bem disso porque depois da canção estar pronta houve no reveillon
carioca o famoso acidente com o “Bateau Mouche”, onde morreram várias pessoas.
E eu ficava pensando nos versos, de início tão abstratos: “Quem vai lá no mar
bravio não sabe o que vai achar...”.
(BT & Lenine)
Eu sou aquele
navio
no mar sem rumo e
sem dono
tenho a miragem
do porto
pra reconfortar
meu sono
e flutuar sobre
as águas
na maré do
abandono.
Ê, lá no mar
eu vi uma
maravilha
vi o rosto de uma
ilha
numa noite de
luar...
Êta luar, lumiou
o meu navio
quem vai lá no
mar bravio
não sabe o que
vai achar...
E sou a ilha
deserta
onde ninguém quer
chegar
lendo a rota das
estrelas
na imensidão do
mar
chorando por um
navio
ai, ai, ui, ui
que passou sem
lhe avistar.
Ê, lá no mar
eu vi uma
maravilha
vi o rosto de uma
ilha
numa noite de
luar...
Êta luar, lumiou
o meu navio
quem vai lá no
mar bravio
não sabe o que
vai achar...
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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