“Envelhecer bem é trabalho para toda
a vida” foi o tema do painel apresentado por Júlio Machado Vaz no Fórum
Socialismo 2019. O médico psiquiatra abordou questões como a necessária
transformação dos cuidados de saúde.
Do esquerda.net (Portugal)
“A palavra velhice reenvia-nos,
queiramos ou não, para um estar. Para um ser. É algo, aliás, que está
completamente burocratizado. Um dia acordamos, temos 65 anos e somos
velhos oficialmente”, afirmou Júlio Machado Vaz no início da sua
intervenção.
O médico psiquiatra fez referência ao
relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) que “baseia as suas
recomendações na análise das mais recentes evidências a respeito do
processo de envelhecimento, e observa que muitas percepções e suposições
comuns sobre as pessoas mais velhas são baseadas em estereótipos
ultrapassados”.
“Como mostra a evidência, a perda das
habilidades comumente associada ao envelhecimento na verdade está apenas
vagamente relacionada com a idade cronológica das pessoas. Não existe
um idoso ‘típico’. A diversidade das capacidades e necessidades de saúde
dos adultos maiores não é aleatória, e sim advinda de eventos que
ocorrem ao longo de todo o curso da vida e frequentemente são
modificáveis, ressaltando a importância do enfoque de ciclo de vida para
se entender o processo de envelhecimento”, lê-se no documento.
Sublinhando que existe “uma mania muito
humana” de “cortarmos a vida às fatias”, o que nos dá uma falsa sensação
de “segurança”, Júlio Machado Vaz lembrou que “os colegas da neurologia
dizem-nos que a nível de desenvolvimento, a nível neuronal, por
exemplo, estar a falar de um fim de adolescência antes dos 24 anos não
faz sentido”.
A ideia de que a vida é um processo e de
que a nossa capacidade física e psicológica está apenas vagamente
relacionada com o passar dos anos esteve presente na sua intervenção.
Assumindo que a adoção de estilos de
vida saudável aumenta a probabilidade de envelhecermos com mais
qualidade de vida, o médico psiquiatra avançou que, a par da necessidade
de os profissionais de saúde respeitarem a liberdade individual de cada
pessoa, é necessário “evitar a armadilha” de considerar que estamos
perante uma “questão meramente individual” e assumir uma “postura
inquisitorial”, que se traduz numa “má prática clínica”.
“É ingênuo e insultuoso não levarmos em
linha de conta as condições de vida, em sentido lato, das pessoas”,
nomeadamente no que respeita às dificuldades econômicas de cada um,
defendeu.
De acordo com Júlio Machado Vaz, é
preciso transformar os sistemas de saúde: “Ao praticarmos uma medicina
baseada no profissional de saúde e não no doente não valorizamos o que
vem do outro lado”, sinalizou, avançando que, “se não existe essa
articulação, perdemos a ‘eficácia’ da nossa atividade”, já para não
falar na pedra basilar, que é o respeito pelo outro.
O profissional de saúde alertou que “não
fazer bem sai mais caro” e que, muitas vezes, estamos a “valorizar a
quantidade dos atos médicos e não a sua qualidade”, o que representa um
“erro crasso em termos éticos, mas também em termos de rentabilidade”,
já que a pessoa acaba por voltar aos serviços ou por sobrecarregar
outras unidades de saúde.
No que respeita à Saúde Pública, Júlio
Machado Vaz considera ainda que é fundamental ter sempre em conta a
diversidade física e mental dos mais velhos e priorizar “uma abordagem
integrada”, com a intervenção de várias profissões. Bem como é
prioritário apostar na formação em gerontologia e geriatria e nos
cuidados continuados e domiciliários. Outra questão levantada pelo
psiquiatra diz respeito ao facto de, muitas vezes, os profissionais de
saúde lidarem com a morte de uma forma impessoal e asséptica, não
priorizando o bem-estar da pessoa e diminuindo a qualidade de vida de
alguém ao tentar adiar a sua morte.
Durante a sua intervenção, Júlio Machado
Vaz abordou ainda a questão da discriminação a que os mais idosos estão
sujeitos: “Vivemos numa sociedade que vive totalmente prostrada perante
os valores da juventude. Uma das consequências é que a mensagem que a
mídia nos passa não é como envelhecer bem, é como fingir que não
envelhecemos, o que tem toda a lógica numa sociedade capitalista de
consumo”, frisou.
“A partir de certa altura,
interiorizamos essa discriminação e já não precisamos de ser
discriminados pelos outros. Temos polícias dentro de nós. E não há pior
censura do que aquela que foi interiorizada, porque arrastamo-la por
todo o lado”, acrescentou.
Júlio Machado Vaz apontou também a
discriminação explícita no que respeita à sexualidade dos mais idosos:
“Vivemos numa sociedade que decreta que é de mau gosto os mais velhos
apaixonarem-se, namorarem, quererem sentir-se bem. De tal maneira que
até o léxico é afetado”.
Também a forma como a sociedade lida com
a tristeza gera preconceitos e más práticas clínicas: “Vivemos numa
sociedade que tem uma tolerância baixíssima para os afetos
desagradáveis. A tristeza é um afeto completamente normal. Confundir
tristeza com depressões e encher as pessoas de drogas, bem como partir
do princípio que uma pessoa mais velha está deprimida apenas porque é
mais velha é péssimo na medicina”, destacou.
O médico psiquiatra ressaltou a
importância da participação social, assinalando que, com a reforma,
inúmeras vezes “descobrimos que temos poucos laços sociais, que não
temos hobbies, não temos interesses e isso pode ser catastrófico,
nomeadamente em termos psicológicos, o que está associado a determinadas
patologias”.
Júlio Machado Vaz alertou que “os
modelos antigos de cuidados informais são completamente impossíveis hoje
em dia” e que é urgente garantir os direitos dos cuidadores.
A necessidade de assegurar uma
supervisão governamental das medidas, mas com parcerias com as famílias e
comunidades; de remover barreiras arquitetônicas e adaptar o
planeamento urbano; de apostar na melhoria de salários e condições de
trabalho; de implementar verdadeiras políticas de gênero; de apoiar
iniciativas comunitárias; de garantir o direito à habitação e a proteção
contra a pobreza também constam das prioridades enumeradas pelo
psiquiatra.
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