quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Dançando com o espantalho

Tenho dito ou insinuado aqui que amadurecer deveria ser visto como algo positivo e que envelhecimento não é revogação da individualidade. Um dos motivos de nossas frustrações, homens e mulheres, é vivermos numa cultura que idolatra a juventude e endeusa a forma física além de qualquer sensatez. Se maturidade é fruto da mocidade e velhice é resultado da maturidade, viver é ir tecendo naturalmente a trama da existência. Processo tão enganosamente trivial para aquele que o vive, tão singular para quem o observa. Tão insignificante no contexto da história humana. Seguindo esse fluxo, vestidos com nossas circunstâncias, carregando a bagagem que nos foi dada e a que fomos adquirindo, navegamos. Escolhemos algo do roteiro, desenhamos alguma coisa nas margens, acompanhados por presenças positivas mas também pelo monstro da nossa dificuldade de viver bem, sempre pronto a liquidar conosco. Não nos damos sempre conta dele: faz parte da nossa cultura, nossa educação, da mídia, da personalidade. Está nas revistas, na mente dos que nos rodeiam e dos que amamos, está dentro de nós. Cresce e prospera na medida em que não temos o costume de lidar com ele. O inimigo é variado, tem muitas cabeças. Somos muitos, dizia o demônio que possuíra um infeliz na literatura cristã. Todas elas nos controlam e inibem: a imposição e aceitação de modelos inatingíveis; a não-apreciação de si; a submissão a preconceitos, a ausência de valores pessoais; a frivolidade nos relacionamentos afetivos mais variados. O consequente temor do processo que em lugar de evolução e crescimento nos assusta como aniquilamento. Precisamos superar a ideia de que estamos meramente correndo para o nosso fim, num processo de deterioração e apagamento. Esse é o nosso fantasma mais destrutivo, pois se alimenta com nosso terror da morte, e cresce desmesuradamente porque nosso vazio interior lhe concede um espaço extraordinário. Se quisermos, mais que sobreviver, crescer enquanto humanos e pensantes, esse relógio sobre a mesa-de-cabeceira ou no pulso – especialmente o relógio em nossa mente – deve ser apenas aquilo que é: instrumento para medir e coordenar as atividades cotidianas. Para marcar as fases com seus encantos e limitações, sua riqueza e suas privações, mas de modo geral significando crescimento, não mutilação. A cada transição executamos nossos rituais, perdemos alguns bens e ganhamos outros, alguns duramente conquistados.

Falo dos bens de dentro.

Esses que nem o banco fechando nem país falindo caducam; esses que nem o amado morrendo a gente perde; esses que na dor nos iluminam, na alegria nos ajudam a curtir mais, e no tédio – quando tudo parece tão sem graça – agitam correntes submersas de energia mesmo se a superfície parece morta. Quando pensamos que tudo acabou, que nunca mais teremos alegria ou emoção, tudo isso que estava guardado e é bom emerge em plena vigência e força. É desses tesouros que eu falo: eles podem vencer o que nos paralisa. Hão de superar essa cultura do aqui e agora, do aproveitar, do adquirir, do estar na moda, do estar por cima, do estar-se agitando e curtindo sem parar. Na infância tudo é sempre agora.

Estamos ocupados em viver. Aos poucos se distinguem antes e depois, talvez pela separação momentânea de uma presença reconfortante que vai e retorna num tempo ainda não medido. A ausência se torna real num lampejo quando essa pessoa volta.”Ué, você não estava aí?” Por fim emergimos daquelas águas mornas e percebemos que existimos – no tempo.

Estamos em processo, em viagem, estamos em curso. O limbo assume nitidez e começa a nossa história. Quando menina eu gostava de levantar ao amanhecer e saborear o proibido, pois criança tinha de ficar quieta na cama até a mãe chamar. Ia até a janela e abria, devagar para não fazer ruído. Como era mágico o jardim naquela hora. Pleno da noite que terminava, pleno da espera pelo dia que ia começar.

Já naquela época a alternância dos dias não me parecia hostil, mas uma espécie de feitiço que provocava transformações: o casulo com a promessa de asas cintilantes. Por que necessariamente agora, com corpo agrandado, pele menos suave, rugas e experiência, estarei em declínio e não em natural transformação – como tudo o mais? O que é bonito num bebê desagrada num adolescente; o que num jovem deslumbra, numa pessoa madura pode ficar deslocado; assim como na velhice – se ela não for uma caricatura da juventude -, encanta o que é próprio dela. “Mas o que pode haver de positivo em ficar velho?” perguntaram-me um dia. “Diga uma coisa só, e vou acreditar.” As qualidades interiores vão sobressaindo, afirmando-se sobre as físicas. Ao contrário da pele, cabelos, brilho de olhar e firmeza de carnes, elas tendem a se aprimorar: inteligência, bondade, dignidade, escutar o outro. Capacidade de compreender. Mas é preciso que exista algo interior para sobressair: o desgaste físico será compensado pelo brilho de dentro. Não será preciso nem mutilar-se com cirurgias além do razoável, maquilagem exagerada, roupas extravagantes.., nem ocultar-se porque estamos maduros, ou já estamos velhos. Se a transformação que se efetua em nosso corpo é inexorável, sua velocidade e características dependem de genética, cuidados, saúde, vitalidade interior também. Com o inexorável só há uma saída, e não será fugir: é vivenciá-lo do melhor modo que posso. A questão não é que a vida fique suspensa, mas que a gente viaje com ela, em lugar de paralisar-se e ficar atrás.
Se não formos demasiado tolos, gostaremos de nossa aparência em todos os estágios. Olhar-se no espelho e dizer: “Bom, essa sou eu”. Nem extraordinariamente conservada nem excessivamente destruída. Estou como se está nesta fase. E se eu sou assim, gosto de mim. Sou a minha história. Pois não somos só nossa aparência; mas somos também nossa aparência. Negá-la é negar o que, afinal, nos tornamos. Por isso, se é melancólico negligenciar a aparência, é patético querermos parecer ter 20 anos aos 40, ou 40 aos 70. Deveríamos querer ser belas, dignas, elegantes e vitais pessoas – de 60 ou 80 anos. Felizes, ainda, aos oitenta anos.

Emprestaram-me um livro onde estava sublinhada a frase: a meta da vida é a morte. Bem, eu acredito que o final da vida é a morte, mas que a meta da vida é uma vida feliz. Palavras gastam-se como pedras de rio: mudam de forma e significado, de lugar, algumas desaparecem, vão ser lama de leito das águas. Podem até reaparecer renovadas mais adiante. Felicidade é uma delas. Banalizou-se porque vivemos numa época de vulgarização de grandes emoções e desejos, tudo fast food, prêt-à-porter, pronto para o micro-ondas, fácil e rápido… e tantas vezes anêmico. Se por encantamento e profissão escolhi o território das palavras, sei o quanto algumas se contaminam pelo uso e se tornam agressivas ou contraditórias, têm ares de ironia ou de ingenuidade. Tornam-se confusas e ineficientes, prestam-se a mal-entendidos ou clareiam mais o significado. Conheço um pouco o modo como se apoderam das nossas experiências e lhes dão rostos, roupas, ares que nem tínhamos imaginado. Gosto das coisas – pessoas e palavras – desconcertantes. Seus contornos imprecisos permitem que a gente exerça o direito de refletir e de criar em cima delas. Mas algumas palavras e circunstâncias me assustam quando espio por trás de seus sete véus.

Muitas revestem as transformações de nosso tempo, mudança de padrões de comportamento, progresso e avanço, mas também sombra e estéril angústia, desperdício. Algumas têm a ver com ideais que não só raramente atingimos, como, obtidos, pouco têm a ver com liberdade e com felicidade. O curso do tempo significaria me tornar cada vez mais completo, se eu não carregasse comigo o preconceito fundante de nossa época: só a juventude é bela e tem direito de ser feliz, a maturidade é sem graça e a velhice é uma maldição. A idade madura não precisa ser o começo do fim, idade avançada não precisa ser isolamento e secura.

Podem-se fortalecer laços amorosos, familiares, de amizade, variar de interesses, curtir melhor o gozo das coisas boas. Existir é poder refinar nossa consciência de que somos demais preciosos para nos desperdiçarmos buscando ser quem não somos, não podemos, nem queremos ser. “É assim, o tempo: devora tudo pelas beíradinhas, roendo, corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a não ser que faça dele seu bicho de estimação.” (O ponto cego, 1999)

Lya Luft

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