Tenho dito ou insinuado aqui que amadurecer deveria ser visto como algo
positivo e que envelhecimento não é revogação da individualidade. Um dos
motivos de nossas frustrações, homens e mulheres, é vivermos numa
cultura que idolatra a juventude e endeusa a forma física além de
qualquer sensatez. Se maturidade é fruto da mocidade e velhice é
resultado da maturidade, viver é ir tecendo naturalmente a trama da
existência. Processo tão enganosamente trivial para aquele que o vive,
tão singular para quem o observa. Tão insignificante no contexto da
história humana. Seguindo esse fluxo, vestidos com nossas
circunstâncias, carregando a bagagem que nos foi dada e a que fomos
adquirindo, navegamos. Escolhemos algo do roteiro, desenhamos alguma
coisa nas margens, acompanhados por presenças positivas mas também pelo
monstro da nossa dificuldade de viver bem, sempre pronto a liquidar
conosco. Não nos damos sempre conta dele: faz parte da nossa cultura,
nossa educação, da mídia, da personalidade. Está nas revistas, na mente
dos que nos rodeiam e dos que amamos, está dentro de nós. Cresce e
prospera na medida em que não temos o costume de lidar com ele. O
inimigo é variado, tem muitas cabeças. Somos muitos, dizia o demônio que
possuíra um infeliz na literatura cristã. Todas elas nos controlam e
inibem: a imposição e aceitação de modelos inatingíveis; a
não-apreciação de si; a submissão a preconceitos, a ausência de valores
pessoais; a frivolidade nos relacionamentos afetivos mais variados. O
consequente temor do processo que em lugar de evolução e crescimento nos
assusta como aniquilamento. Precisamos superar a ideia de que estamos
meramente correndo para o nosso fim, num processo de deterioração e
apagamento. Esse é o nosso fantasma mais destrutivo, pois se alimenta
com nosso terror da morte, e cresce desmesuradamente porque nosso vazio
interior lhe concede um espaço extraordinário. Se quisermos, mais que
sobreviver, crescer enquanto humanos e pensantes, esse relógio sobre a
mesa-de-cabeceira ou no pulso – especialmente o relógio em nossa mente –
deve ser apenas aquilo que é: instrumento para medir e coordenar as
atividades cotidianas. Para marcar as fases com seus encantos e
limitações, sua riqueza e suas privações, mas de modo geral significando
crescimento, não mutilação. A cada transição executamos nossos rituais,
perdemos alguns bens e ganhamos outros, alguns duramente conquistados.
Falo dos bens de dentro.
Esses que nem o banco fechando nem
país falindo caducam; esses que nem o amado morrendo a gente perde;
esses que na dor nos iluminam, na alegria nos ajudam a curtir mais, e no
tédio – quando tudo parece tão sem graça – agitam correntes submersas
de energia mesmo se a superfície parece morta. Quando pensamos que tudo
acabou, que nunca mais teremos alegria ou emoção, tudo isso que estava
guardado e é bom emerge em plena vigência e força. É desses tesouros que
eu falo: eles podem vencer o que nos paralisa. Hão de superar essa
cultura do aqui e agora, do aproveitar, do adquirir, do estar na moda,
do estar por cima, do estar-se agitando e curtindo sem parar. Na
infância tudo é sempre agora.
Estamos ocupados em viver. Aos
poucos se distinguem antes e depois, talvez pela separação momentânea de
uma presença reconfortante que vai e retorna num tempo ainda não
medido. A ausência se torna real num lampejo quando essa pessoa
volta.”Ué, você não estava aí?” Por fim emergimos daquelas águas mornas e
percebemos que existimos – no tempo.
Estamos em processo, em
viagem, estamos em curso. O limbo assume nitidez e começa a nossa
história. Quando menina eu gostava de levantar ao amanhecer e saborear o
proibido, pois criança tinha de ficar quieta na cama até a mãe chamar.
Ia até a janela e abria, devagar para não fazer ruído. Como era mágico o
jardim naquela hora. Pleno da noite que terminava, pleno da espera pelo
dia que ia começar.
Já naquela época a alternância dos dias não
me parecia hostil, mas uma espécie de feitiço que provocava
transformações: o casulo com a promessa de asas cintilantes. Por que
necessariamente agora, com corpo agrandado, pele menos suave, rugas e
experiência, estarei em declínio e não em natural transformação – como
tudo o mais? O que é bonito num bebê desagrada num adolescente; o que
num jovem deslumbra, numa pessoa madura pode ficar deslocado; assim como
na velhice – se ela não for uma caricatura da juventude -, encanta o
que é próprio dela. “Mas o que pode haver de positivo em ficar velho?”
perguntaram-me um dia. “Diga uma coisa só, e vou acreditar.” As
qualidades interiores vão sobressaindo, afirmando-se sobre as físicas.
Ao contrário da pele, cabelos, brilho de olhar e firmeza de carnes, elas
tendem a se aprimorar: inteligência, bondade, dignidade, escutar o
outro. Capacidade de compreender. Mas é preciso que exista algo interior
para sobressair: o desgaste físico será compensado pelo brilho de
dentro. Não será preciso nem mutilar-se com cirurgias além do razoável,
maquilagem exagerada, roupas extravagantes.., nem ocultar-se porque
estamos maduros, ou já estamos velhos. Se a transformação que se efetua
em nosso corpo é inexorável, sua velocidade e características dependem
de genética, cuidados, saúde, vitalidade interior também. Com o
inexorável só há uma saída, e não será fugir: é vivenciá-lo do melhor
modo que posso. A questão não é que a vida fique suspensa, mas que a
gente viaje com ela, em lugar de paralisar-se e ficar atrás.
Se não formos demasiado tolos, gostaremos de nossa aparência em todos os estágios. Olhar-se no espelho e dizer: “Bom, essa sou eu”. Nem extraordinariamente conservada nem excessivamente destruída. Estou como se está nesta fase. E se eu sou assim, gosto de mim. Sou a minha história. Pois não somos só nossa aparência; mas somos também nossa aparência. Negá-la é negar o que, afinal, nos tornamos. Por isso, se é melancólico negligenciar a aparência, é patético querermos parecer ter 20 anos aos 40, ou 40 aos 70. Deveríamos querer ser belas, dignas, elegantes e vitais pessoas – de 60 ou 80 anos. Felizes, ainda, aos oitenta anos.
Se não formos demasiado tolos, gostaremos de nossa aparência em todos os estágios. Olhar-se no espelho e dizer: “Bom, essa sou eu”. Nem extraordinariamente conservada nem excessivamente destruída. Estou como se está nesta fase. E se eu sou assim, gosto de mim. Sou a minha história. Pois não somos só nossa aparência; mas somos também nossa aparência. Negá-la é negar o que, afinal, nos tornamos. Por isso, se é melancólico negligenciar a aparência, é patético querermos parecer ter 20 anos aos 40, ou 40 aos 70. Deveríamos querer ser belas, dignas, elegantes e vitais pessoas – de 60 ou 80 anos. Felizes, ainda, aos oitenta anos.
Emprestaram-me um livro onde estava sublinhada a
frase: a meta da vida é a morte. Bem, eu acredito que o final da vida é a
morte, mas que a meta da vida é uma vida feliz. Palavras gastam-se como
pedras de rio: mudam de forma e significado, de lugar, algumas
desaparecem, vão ser lama de leito das águas. Podem até reaparecer
renovadas mais adiante. Felicidade é uma delas. Banalizou-se porque
vivemos numa época de vulgarização de grandes emoções e desejos, tudo
fast food, prêt-à-porter, pronto para o micro-ondas, fácil e rápido… e
tantas vezes anêmico. Se por encantamento e profissão escolhi o
território das palavras, sei o quanto algumas se contaminam pelo uso e
se tornam agressivas ou contraditórias, têm ares de ironia ou de
ingenuidade. Tornam-se confusas e ineficientes, prestam-se a
mal-entendidos ou clareiam mais o significado. Conheço um pouco o modo
como se apoderam das nossas experiências e lhes dão rostos, roupas, ares
que nem tínhamos imaginado. Gosto das coisas – pessoas e palavras –
desconcertantes. Seus contornos imprecisos permitem que a gente exerça o
direito de refletir e de criar em cima delas. Mas algumas palavras e
circunstâncias me assustam quando espio por trás de seus sete véus.
Muitas
revestem as transformações de nosso tempo, mudança de padrões de
comportamento, progresso e avanço, mas também sombra e estéril angústia,
desperdício. Algumas têm a ver com ideais que não só raramente
atingimos, como, obtidos, pouco têm a ver com liberdade e com
felicidade. O curso do tempo significaria me tornar cada vez mais
completo, se eu não carregasse comigo o preconceito fundante de nossa
época: só a juventude é bela e tem direito de ser feliz, a maturidade é
sem graça e a velhice é uma maldição. A idade madura não precisa ser o
começo do fim, idade avançada não precisa ser isolamento e secura.
Podem-se
fortalecer laços amorosos, familiares, de amizade, variar de
interesses, curtir melhor o gozo das coisas boas. Existir é poder
refinar nossa consciência de que somos demais preciosos para nos
desperdiçarmos buscando ser quem não somos, não podemos, nem queremos
ser. “É assim, o tempo: devora tudo pelas beíradinhas, roendo,
corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a
não ser que faça dele seu bicho de estimação.” (O ponto cego, 1999)
Lya Luft
Nenhum comentário:
Postar um comentário