Hoje vou escrever sobre a arte de rezar. Dirão que esse não é tópico
que devesse ser tratado por um terapeuta. Rezas e orações são coisas de
padres, pastores e gurus religiosos, a serem ensinadas em igrejas,
mosteiros e terreiros. Acontece que eu sei que o que as pessoas desejam,
ao procurar a terapia, é reaprender a esquecida arte de rezar. Claro
que elas não sabem disto. Falam sobre outras coisas, dez mil coisas. Não
sabem que a alma deseja uma só coisa, cujo nome esquecemos. Como disse
T. S. Eliot, temos conhecimento do movimento, mas não da tranquilidade;
conhecimento das palavras e ignorância da Palavra. Todo o nosso
conhecimento nos leva para mais perto da nossa ignorância, e toda a
nossa ignorância nos leva para mais perto da morte.
A terapia é a
busca desse nome esquecido. E quando ele é lembrado e é pronunciado com
toda a paixão do corpo e da alma, a esse ato se dá o nome de poesia. A
esse ato se pode dar também o nome de oração.
Por detrás da nossa
tagarelice (falamos muito e escutamos pouco) está escondido o desejo de
orar. Muitas palavras são ditas porque ainda não encontramos a única
palavra que importa. Eu gostaria de demonstrar isso – e a demonstração
começa com um passeio. Para começar, abra bem os olhos! Veja como este
mundo é luminoso e belo! Tão bonito que Nietzsche até mesmo lhe compôs
um poema:
“Olhei para este mundo – e era como se uma maçã
redonda se oferecesse à minha mão, madura dourada maçã de pele de veludo
fresco… Como se mãos delicadas me trouxessem um santuário, santuário
aberto para o deleite de olhos tímidos e adorantes: assim este mundo
hoje a mim se ofereceu…“
Tudo está bem. Tudo está em ordem. Nada impede o deleite dessa
dádiva. Ninguém doente. Nenhuma privação econômica terrível. E há mesmo o
gostar das pessoas com quem se vive, sem o que a vida teria um gosto
amargo.
Mas isso não é tudo. Além das necessidades vitais básicas a
alma precisa de beleza. E a beleza – o mundo a serve a mancheias. Está
em todos os lugares, na lua, na rua, nas constelações, nas estações, no
mar, no ar, nos rios, nas cachoeiras, na chuva, no cheiro das ervas, na
luz que cintila na água crespa das lagoas, nos jardins, nos rostos, nas
vozes, nos gestos.
Além da beleza estão os prazeres que moram nos
olhos, nos ouvidos, no nariz, na boca, na pele. Como no último dia da
criação, temos de concordar com o Criador: olhando para o que tinha sido
feito, viu que tudo era multo bom.
E, no entanto, sem que haja
qualquer explicação para esse fato, tendo todas as coisas, a alma
continua vazia. Álvaro de Campos colocou este sentimento num poema:
“Dá-me
lírios, lírios, e rosas também. Crisântemos, dálias, violetas e os
girassóis acima de todas as flores. Mas por mais rosas e lírios que me
dês, eu nunca acharei que a vida é bastante, Faltar-me-á sempre qualquer
coisa. Minha dor é inútil como uma gaiola numa terra onde não há aves. E
minha dor é silenciosa e triste como a parte da praia onde o mar não
chega."
Como se uma nuvem cinzenta de tristeza-tédio cobrisse
todas as coisas. A vida pesa. Caminha-se com dificuldade. O corpo se
arrasta. As pessoas procuram a terapia alegando faltar um lírio aqui,
uma rosa ali, um crisântemo acolá. Buscam, nessas coisas, a única coisa
que importa: a alegria. Acontece que as fontes da alegria não são
encontradas no mundo de fora. É inútil que me sejam dadas todas as
flores do mundo: as fontes da alegria se encontram no mundo de dentro.
O
mundo de dentro: as pessoas religiosas lhe dão o nome de alma. O que é a
alma? Alma são as paisagens que existem dentro do nosso corpo. Nosso
corpo é urna fronteira entre as paisagens de fora e as paisagens de
dentro. E elas são diferentes “O homem tem dois olhos“, disse o místico
medieval Angelus Silésius. “Com um ele vê as coisas que passam no tempo.
Com o outro ele vê o que é eterno e divino.“ Em algum lugar escondido
das paisagens da alma se encontram as fontes da alegria – perdidas.
Perdidas as fontes da alegria as paisagens da alma se apagam, o corpo
fica como uma casa vazia. E quando a casa está vazia, vai-se a alegria. E
as paisagens de fora ficam feias (a despeito de serem belas).
O
mundo de fora é um mercado onde pássaros engaiolados são vendidos e
comprados. As pessoas pensam que, se comprarem o pássaro certo, terão
alegria. Mas pássaros engaiolados, por mais belos que sejam, não podem
dar alegria. Na alma não há gaiolas.
A alegria é um pássaro que só
vem quando quer. Ela é livre. O máximo que podemos fazer é quebrar
todas as gaiolas e cantar uma canção de amor, na esperança de que ela
nos ouça. Oração é o nome que se dá a esta canção para invocar a
alegria.
Muitas orações são produtos da insensatez das pessoas.
Acham que o universo estaria melhor se Deus ouvisse os seus conselhos.
Pedem que Deus lhes dê pássaros engaiolados, muitos pássaros. Nisso
protestantes e católicos são iguais. Tagarelam. E nem se dão ao trabalho
de ouvir. Não sabem que a oração é só um gemido. “Suspiro da criatura
oprimida“: haverá definição mais bonita? São palavras de Marx. Suspiro:
gemido sem palavras que espera ouvir a música divina, a música que, se
ouvida, nos traria a alegria.
Gosto de ler orações. Orações e
poemas são a mesma coisa: palavras que se pronunciam a partir do
silêncio, pedindo que o silêncio nos fale. A se acreditar em Ricardo
Reis, é no silêncio que existe no intervalo das palavras que se ouve a
voz de “um Ser qualquer, alheio a nós“, que nos fala. O nome do Ser? Não
importa. Todos os nomes são metáforas para o Grande Mistério inominável
que nos envolve. Gosto de ler orações porque elas dizem as palavras que
eu gostaria de ter dito mas não consegui. As orações põem música no meu
silêncio.
– Rubem Alves, no livro “Transparências da eternidade”. Campinas/SP: Editora Verus, 2002.
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