sábado, 10 de setembro de 2016

Bom dia, Orós!

Criador de um aparato de comunicação improvisado, com alto-falantes em uma torre de 13 metros de altura, Seu Dantas desperta e informa a população de Orós, no interior do Estado, há quase 50 anos

Prestes a completar 90 anos, Seu Dantas foi proibido pelos filhos de escalar a estrutura que havia criado décadas atrás para pendurar os quatro alto-falantes - orientados para cada um dos pontos cardeais - que transmitem seu programa matinal, A Voz da Liberdade. Quem passa diante de sua casa de paredes amarelas e janelas escuras não percebe os 13 metros improvisados de escadas de ferro que se levantam acima do teto, ancorados pela caixa d’água que abastece a família.

“Eu brigava, mas quando dava um problema no aparelho ele continuava subindo, mesmo com labirintite. Um amigo fez um cinto de segurança, mas ele não quis usar. Nunca sofreu uma queda, dizia que não precisava de ajuda porque Jesus protegia a subida”, conta Regina, filha de Seu Dantas e companheira do pai na locução do programa. A Voz da Liberdade é transmitido todos os dias, a partir das seis da manhã, e tem duração média de 30 minutos.

Seu Dantas intercala os anúncios e promoções das lojas da Cidade - três reais para três chamadas - com grandes sucessos de Nélson Gonçalves e Orlando Silva, desejos de feliz aniversário e avisos de falecimento. “Até a Macavi já foi nossa cliente fixa”, lembra Regina. Na lista de fregueses antigos e contratos regulares, a prefeitura de Orós ocupava lugar de destaque até o fim da última gestão. “A crise tá prejudicando, vamos perdendo os parceiros”, lamenta.
Seu José Ribeiro Dantas chegou a Orós no final dos anos 1960, depois de percorrer parte do Ceará e Paraíba com ocupações diversas: foi jardineiro de colégio, palhaço de circo e locutor de quermesse. Mas foi nas feiras paroquiais que descobriu o amor pela locução, e logo estava juntando trocados para um curso de radiotécnico e eletrônica. “Quando cheguei aqui, vi que podia trabalhar consertando aquelas peças de radiadora, e aí o negócio entrou em mim”, conta.


A ideia para A Voz da Liberdade surgiu, segundo ele, depois que presenciou o drama de “duas mocinhas que foram demitidas porque chegaram atrasadas no trabalho”. Para evitar que o episódio se repetisse, decidiu criar seu despertador musical. “Eu achava que faltava alguém pra acordar aquilo que tavaparado, acomodado. E todo mundo gostou, até o delegado da cidade entrou no embalo”, garante. Agora, não falta quem comece o dia a partir dos anúncios que Seu Dantas faz em sua estação.

Em quase 50 anos dedicados à locução, guardou na memória alguns poucos atos de resistência: não faz muito tempo, um grupo se juntou para colocar abaixo a criação de Seu Dantas, incomodado com o barulho matinal. Por sorte, a reação popular foi imediata, e em poucos dias circulava pela cidade um documento com mais de mil assinaturas em defesa do programa. “Eu já tô tão acostumada que nem me incomoda. O som é virado pra minha casa, se o telefone tocar eu tenho que levar pro banheiro, mas ele é muito querido na comunidade”, defende Dona Cleide, vizinha do locutor.

Com a progressiva surdez do pai, Regina vem, cada vez mais, assumindo as rédeas do programa. Mas Seu Dantas não pensa em abrir mão da atividade, e faz questão de se levantar cedo para produzir o programa do dia. Em uma dessas vezes, enrolou-se nos discos de música e colocou um forró para tocar enquanto lia o obituário do falecido. A família correu para reparar o dano, engatou canção de igreja, desculpou-se pelo equívoco. Do lado de fora, ninguém se importou. Em Orós, Seu Dantas é figura.

UM FILME PARA SEU DANTAS

Filho de Orós e em Fortaleza há 12 anos, o ator e produtor cultural Edson Cândido se prepara para transformar em documentário a história de Seu Dantas. Partindo de uma investigação sobre comunicação alternativa e empreendedorismo comunitário, Edson começou a entrevistar personagens que faziam parte da vida do locutor e a levantar sua trajetória. “Um tempo atrás, fizeram uma pesquisa pra ver onde estavam as grandes audiências da cidade, e aí detectaram que, entre as 6 e 7 horas, ninguém escuta rádio, todo mudo mundo só ouve A Voz da Liberdade”, comenta.

Jader Santana

Sugestão do leitor
Esta matéria foi sugerida pelo leitor Junior Alves

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