domingo, 25 de setembro de 2016

Tropeções de escritor

O escritor Tim Powers contava que começou a ler um livro e a certa altura dois personagens entram no carro e pegam a estrada para outra cidade. Vão conversando e de repente o narrador diz: “Pedi licença a Fulano e fui na cozinha pegar duas cervejas.” E o leitor dá um pulo e diz: Peraí, os caras não estavam num carro?!
Erro de continuidade não existe só no cinema. Existe um certo surrealismo nesses cortes bruscos motivados por inexperiência, carraspanas, doença na família, ou mero esquecimento mesmo. Um autor de pulp fiction, por exemplo, tinha que fazer “x” páginas por dia e geralmente fazia sem ter tempo (ou saco) para reler o que tinha feito na véspera. Pegava de onde tinha deixado.
A falta de cerimônia deles para com a arte literária beirava a de Nelson Rodrigues, que, reza a lenda, aproveitava os remansos do tempo na redação do jornal onde garimpava o leite das crianças, e ficava na máquina batucando os folhetins com que garantia o café dos adultos, e que assinava como “Suzana Flag”(Meu Destino É Pecar, Escravas do Amor, etc).
Eram novelões intrincados, ora com alguma rudeza naturalista, ora melodrama puro, tango argentino puro. Cada romance era como três ou quatro peças rodriguianas interagindo umas com as outras.
Daí que em certos momentos Nelson enchia o saco, vestia o paletó e descia para almoçar ou para tomar uma. Os colegas corriam para a máquina, liam, sentavam ali e continuavam a história por mais duas ou três páginas até alguém anunciar o retorno dele, e aí todos voltavam a suas mesas. Nelson tirava o paletó, pendurava o paletó no encosto, puxava a cadeira, sentava, erguia o prendedor de metal de sobre a folha de papel e relia as últimas cinco linhas. Repunha o prendedor, e daí seguia em frente.
Isso é uma típica brincadeira de redação ou de escritório, ambientes propensos a esse tipo de gracejo. Imagino por minha conta que esse detalhe, mesmo que fosse revelado a Nelson, não mudaria nada. Ele daria de ombros, enfastiado. Que importava se havia um texto intruso incrustado no DNA de sua criatura? Autoria? Que importava a autoria?  Fossem perguntar a Suzana Flag.
Eu diria que em outro contexto isso seria uma brincadeira surrealista de meta-parceria em cabra-cega. Aquela brincadeira de escrever uma frase e dobrar o papel deixando um pedacinho para ser lido e continuado pelo próximo, que faz o mesmo e passa adiante. São os tais “cadáveres delicados” que André Breton, Luis Buñuel, Paul Éluard e os demais surrealistas praticavam, com textos e desenhos coletivos feitos às cegas.
Nelson Rodrigues, mesmo sob o próprio nome, e no que tem de melhor, sempre foi um imperfeccionista, produzindo sem parar, confiando mais no impacto da verdade central de tudo aquilo do que em qualquer filigrana estilística.
Era escritor de redação de jornal, com formação de almanaque, de palavras cruzadas, de coluna de variedades, curiosidades, faits-divers (como também o foram Georges Perec, Raymond Queneau, Mario Quintana). O redator navalha, que com uma só frase degola uma dúvida e encerra uma questão.
Essa era a escola de Nelson, um fazedor de frases impecável. Teatro + jornal = literatura. A tirada brilhante das grandes cenas do melodrama, e a concisão desconcertante do criador de manchetes.
Talvez alguma coisa de sua obra envelheça, mas não acho que serão os diálogos. Talvez os enredos. Não era um grande concatenador de manobras complicadas. Suas intrigas eram intrigas suburbanas; mesmo no romance eram teatrais; mesmo no teatro tinham algo de radiofônico. Pessoas falando, falando, jogando tudo pra fora. 
E as tramas dele eram entendíveis por quem é capaz de entender uma página policial, uma novela hispânica, um folhetim francês. Mas seu negócio não era a “trama”. Eram as situações bizarras, patéticas, brutais, constrangedoras em que ele jogava seus personagens como quem joga gente aos leões. Seus enredos não parecem um silogismo ou uma equação, e sim uma girândola de fogos de artifício.
Lembro às vezes a história, acho que contada por Frank Gruber, de um escritor de pulp fiction que deu uma festa para uma multidão de amigos em seu apartamento em Manhattan, anos 1940. Enquanto os convidados bebiam e dançavam, o dono da casa, num recanto, datilografava a toda velocidade as últimas vinte páginas de um conto que precisava pôr no Correio no dia seguinte. À meia-noite ele deu o conto por terminado e foi beber e dançar com os outros.
Nessas lendas urbanas literárias, a profissão de escritor parece mais romântica do que é, mas o crítico e o leitor: pensam: como ficaria uma história escrita assim? Para alguns, não faz diferença. Tem gente que escreve num café de calçada, num beliche de caserna, num trem lotado. Tem escritor que nem se altera, pode estar num clube, num grito de carnaval, escrevendo num caderno sob a chuva de confetes, e o texto sai com som de mosteiro.
Penso assim: pessoas como esses escritores pulp reliam o que tinham feito? Pegavam da última frase, como Nelson Rodrigues? Mantinham controle de continuidade em algum bloco-de-notas com nomes, datas, direções mencionadas no texto? Ou era tudo de oitiva?  Isaac Asimov orgulhava-se de só pegar num conto para revisar quando ele era recusado por todas as revistas disponíveis no momento. Eu acho isso uma heresia pior do que não ir ao médico.
O texto que Asimov mandava era seu primeiro rascunho, que já era praticamente o texto final. O Doutor não gostava de reescrever, tinha (ao que se diz) uma memória espantosamente retentiva, e defendia sua teoria estilística da “prosa da vidraça” (transparente, mostrando tudo, sem chamar a atenção para si)  contra a “prosa do vitral”, a prosa ornada, que não importa do que fale, está mostrando antes de tudo a si própria.
Se você não é Asimov, como é o meu caso, o jeito é revisar. Você “perdiganha” um tempo imenso relendo pela décima vez um trecho que já foi reescrito nove, mas por isso mesmo, prestenção. 
Será que Nelson percebeu e cortou as intervenções dos seus companheiros de jornal? E como seriam? Será que eles esculhambavam muito, ou procuravam repetir os nomes dos personagens, continuar, mesmo avacalhando, o que estava escrito ali? Cem anos depois, algum professor de literatura vai envelhecer tentando em vão entender que cortes bruscos de enredo e de tom eram aqueles que de vez em quando sobressaltavam o livro.
De qualquer modo, brincadeira surrealista ou não, é uma interferência na obra feita à revelia do autor da obra. Comparo com aquela tradução de Os Lusíadas para o inglês onde o tradutor britânico cortou várias estrofes consideradas impróprias, mas em compensação inseriu trezentos versos com a descrição de uma batalha marítima que não existe no original. (Aqui:
 
Bráulio Tavares 

Nenhum comentário: