O que distingue a época em que eu corria dos PMs montados a cavalo nas ruas
centrais do Recife, desta quando escrevo sobre os jovens vítimas da violência da
PM de São Paulo, é que há 45 anos vivíamos sob o tacão da ditadura militar
inaugurada em março de 1964 e só concluída formalmente em março de 1985. De
resto, agora como antes, o que os jovens tentam fazer é somente política. E nada
mais.
Aqueles obrigados a conviver com a ditadura eram chamados pelas autoridades
de subversivos, comunistas e, mais tarde, terroristas. Assim também eram
apresentados pela imprensa em geral.
Enfrentavam a repressão com paus e pedras e derrubavam cavalarianos com bolas
de gude.
Até dezembro de 1968 apenas apanhavam e eram presos por pouco tempo. Dali
para frente passaram a ser torturados e mortos.
Muitos eram "filhos órfãos de pais vivos - quem sabe... Mortos, talvez...
Órfãos do talvez e do quem sabe".
Ou de "viúvas de maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem
sabe e do talvez", como denunciou o cearense Alencar Furtado, líder do PMDB na
Câmara dos Deputados, em discurso que lhe custou o mandato cassado em junho de
1977 pelo presidente-general Ernesto Geisel.
Um objetivo unificava as diversas tendências e organizações que atraíam os
jovens: a luta pela liberdade.
Quando a ditadura tirou a máscara e exibiu sua carranca medonha, os jovens se
dividiram entre duas formas de combatê-la: pela via legal do prudente exercício
cotidiano da política e pela via armada.
Quando a ditadura chegou ao fim, os que ainda eram jovens foram terminar seus
estudos e cuidar da vida.
O ambiente estudantil, as entidades juvenis que restaram e os partidos que
passaram a atuar livremente depois da redemocratização do país foram incapazes
de seduzir as gerações que sucederam àquelas sacrificadas ou brutalizadas pela
ditadura de 64.
Quem se encarregou de fazê-lo foi a sociedade de consumo com todas as suas
formidáveis invenções. Os jovens só se animaram a sair às ruas para ajudar a
derrubar Collor e a eleger Lula. Desanimaram ao vê-los mais adiante de mãos
dadas como bons aliados.
As redes sociais começaram a funcionar como seu ponto de encontro e sua
tribuna.
Manifesto eletrônico tomou o lugar dos antigos abaixo-assinados. Nunca se
produziu tanto manifesto como nos últimos 10 anos. Basta colar ali o nome
previamente digitado e sair para a balada.
Ainda é assim. Talvez ainda seja assim por muito tempo. Talvez esteja
deixando de ser assim. É cedo para saber. E, no entanto...
No período de apenas uma semana, alguns milhares de jovens marcharam pelas
ruas de uma dezena de cidades protestando contra o aumento das passagens de
ônibus, os milionários gastos públicos com a Copa do Mundo, e o Estatuto do
Nascituro.
Foram recepcionados com bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, balas
de borracha e policiais furiosos capazes de baixar o cacete em quem apenas a
tudo assistia assustado.
O epicentro dos protestos foi a capital de São Paulo. Ali, e em mais três ou
quatro capitais, esta noite promete novos confrontos entre o novo e o velho, o
aprendiz e o sabe tudo, o insatisfeito e o conformado.
Pouco importa que os jovens disparem suas exigências em todas as direções
sem priorizar nenhuma, que careçam de líderes amadurecidos, e que acolham em
seu meio uma minoria de baderneiros e de vândalos.
Desde quando foi diferente no passado?
Somente a experiência ensina. E não há porque imaginar que os jovens de hoje
não aprenderão.
Por mais legítimo que seja, o poder existe para ser contestado. Se não for
pode virar tirania.
A natureza do poder é conservadora.
A natureza da rebeldia é destrutiva.
O progresso social e humanístico é filho legítimo do eterno confronto entre a
rebeldia e o poder.
Que assim seja!
Ricardo Noblat
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