Uma crônica começa a se desenrolar meio preguiçosamente. Precisa
apenas de um fio de assunto, que pode ser encontrado num olhar pela janela,
numa consulta à estante, na lembrança de um episódio da véspera ou mesmo no
mergulho vagaroso em busca da raiz de um sentimento, como quando reagimos
diante de um fato e mais tarde estranhamos nossa própria reação. Começa então
aquele tatear de possibilidades, um jogo de redigir frases simples mas que nos
deem a sensação de que uma pedra foi removida. Começa assim a crônica, frases
intangíveis removendo pedras pesadas; ou então, quem sabe, como uma pérola ao
contrário, um grão de areia que se abre e revela estar cheio de madrepérola por
dentro.
Claro que tudo depende da paleta verbal do autor, e até de sua
disposição naquele dia – a direção para onde ele foi virado pelos ventos da
vida à sua volta. A crônica deve ter esse nome porque depende do Tempo, é um
jogo de búzios verbais lançados pelo Tempo. Só poderia ser escrita assim hoje,
porque amanhã os ingredientes já teriam sido outros, mesmo que o projeto
original fosse o mesmo. A crônica não se sente obrigada a contar uma história.
A história será bem recebida, se brotar alguma história no decorrer do
processo; é uma convidada bem vinda, mas, se não aparecer, a festa acontece do
mesmo modo.
O cronista é como um catador de lixo da História, ele procura o que
não foi aproveitado, o que passou despercebido, o que ninguém se atreveu a
comentar, o que não mereceu atenção, o que foi enxergado apenas por um lado, o
que passou em branco, o que entrou pra lista negra, o que nos relatos oficiais
ficou meio com uma cor-de-burro-quando-foge. Por outro lado, comparado aos
autores de imensos murais realistas, o cronista é um cartunista, que em
dois-três rabiscos resume uma vida anônima, um sentimento eterno, uma
Revolução.
A crônica é plástica, é
elástica, é flexível, é multiuso, é multimídia. Como aqueles monstros
plasmáticos dos filmes de pesadelo radioativo, ela tudo absorve, tudo dissolve
e assimila a si mesma. Pode falar de flores e de beija-flores, de armamentos e
de Armageddons, de fantasmas e de malassombros, de política e de polícia, de
donos do mundo e de donas de casa. Não pode ser definida pela sua temática, nem
pela sua extensão, nem pela sua estrutura interna, nem pela emoção que provoca
ou pela estante onde é colocada. Talvez seja a primeira das formas literárias,
antes do Big Bang que a explodiu em gêneros; talvez seja a última, para onde
fluíram todas as anteriores, a que aprendeu com todas e de todas pega algo
emprestado. É a aluna prodígio da primeira fila, sempre atenta e sempre ligada,
de óculos e sem calcinha.
Braulio Tavares
(TAVARES,
Bráulio. Uma crônica. In: Jornal
da Paraíba. Campina Grande-PB: ano 42, n. 11.987, 06-04-2013, “Opinião”, p.
6.) ou no blog do autor Mundo
Fantasmo.
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