domingo, 7 de abril de 2013

Entre o sonho e a realidade

A leitura de um ensaio da psicanalista Vera Marieta Fischer, "Observações sobre o filme 'Sonhos', de Akira Kurosawa", me leva a pensar sobre a ligação intensa que, desde muito jovem, sinto com a obra do falecido cineasta japonês (1910-1998). O ensaio de Vera aparece no livro "Apontamentos psicanalíticos" (Zagodoni Editora, 2012). Abre com uma inspiradora frase de Jean-Luc Godard: "Cinema não é sonho nem realidade: é alguma coisa no meio".

Pois é assim, como "alguma coisa no meio", que sempre senti a obra de Kurosawa. Sei que são filmes, que são o resultado da criatividade do cineasta e de seu empenho em dar forma concreta à beleza e à dor. Sei que são "objetos" _ que estão fora de mim. Mas, sempre que os revejo, sou tomado pela sensação de que eles se conectam, de modo irreversível, com algo que carrego em meu interior. De que eles me invadem e me alimentam.

Justamente por isso, acredito, Kurosawa é um grande artista: porque não trabalha "sobre" o mundo, mas "com" o mundo, ou melhor ainda, "dentro" do mundo. É por isso que temos uma relação tão íntima com seus filmes, como se eles fizessem parte de nós mesmos. Lembra Vera que Kurosawa descende de uma família de guerreiros samurais. De fato, uma luta secreta se trava no interior de sua obra. Luta que se passa não fora, nem dentro, mas no espaço "entre" assinalado por Godard.

O episódio que mais me impressiona em "Sonhos" é aquele ambientado em um túnel. Depois de atravessá-lo, um comandante militar se dá conta de foi seguido por seu derrotado pelotão. Pelotão de mortos, que ele _ por algum erro _ enviou para morte. Mesmo mortos, os soldados retornam para cobrar do comandante as conseqüências de seu ato. Retornam porque, mesmo lançados em outro mundo, insistem em viver . Como assinala Vera: vivem através de uma culpa, guardada no coração do chefe, sentimento que não se apaga.

Além de muito belo, embora doloroso, o epísódio do túnel, ao meu ver, sintetiza a relação que temos com a arte. Isso se a levamos a sério, se a carregamos dentro de nós, como uma difícil conquista, e não fora. Ela não está nem no mundo exterior _ a realidade, a indústria cultural, o mercado _ nem no interior. É uma espécie de cola que conecta os dois, fazendo parte de ambos sem deles se apossar completamente.

Aponta Vera, no episódio do túnel, a importância da "confusão entre realidade e sonho". Em seu inspirado ensaio, ela vê o túnel, ainda, como "uma passagem" entre o passado e o futuro. Isto é: como uma conexão, ou ponte _ escura e amedrontadora. Parece-me muito estimulante pensar a arte como uma ponte. Como um objeto de ligação: um pé de um lado, outro de outro, uma transição enfim.

Quando admiramos uma tela em um museu ou galeria, estamos, a princípio, fora dela. Na perspectiva banal da realidade, de fato estamos. Podemos até nos sentar em algum banco do salão para, com alguma distância e conforto, observá-la melhor. Mas só chegamos ao quadro se ele se liga a alguma coisa _ no caso do comandante: a culpa
_ que já trazemos dentro de nós. Se algo, como um raio, se interpõe entre nós, e nos alimentamos dessa súbita energia.

Também a literatura exige essa ligação intensa e instintiva, ou se torna mero ditado burocrático _ como as palavras de um capitão dando ordens de praxe (e talvez mortais) a seus comandados. Livros só tomam forma quando nos lançamos dentro deles _ e eles, no mesmo movimento, se lançam dentro de nós. A palavra mais adequada para pensar esse vínculo talvez seja "troca". Sem essa permuta, a literatura, a pintura, o cinema não passam de objetos desvitalizados, que podemos admirar por obrigação, ou esnobismo, mas nunca realmente sorver.

O mais importante no ensaio de Vera é que ele nos mostra como a arte só faz sentido se é experimentada como algo vivo. Como diz Godard: ela não é a própria vida, mas também não deixa de ser. É uma espécie de combustível, ou força, que agita dois corpos desvitalizados (arte e observador), levando-os a se erguer e, juntos, despertar.

Exatamente como o pelotão de mortos faz com seu capitão. Nem sempre é uma experiência agradável, mas só ela nos conserva vivos.
 
Não é fácil atravessar esse túnel. Lembra-nos Vera que, à saída dele, o comandante é acossado por um cão feroz. "Ouve um cão rosnar. Passos ecoam". Obstáculos se erguem. O medo toma, enfim, uma forma. Só conseguimos nos aproximar da arte se ultrapassamos certa dose de medo. Não, não o derrotamos. Mas, como o capitão, ainda que cheios de pavor diante do cão feroz, não podemos recuar. Todo recuo (como a ordem final do comandante) só conduz ao nada.

"Sonhos" é um filme que desperta medo, ou pelo menos ansiedade, justamente porque perfura nossa posição confortável _ e aparentemente inabalável _ de "espectadores". Não importa se somos espectadores bem treinados, ou não: isso não faz a menor diferença. Lembra-nos Kurosawa que, se a arte é vista só como um espetáculo, ela pode estourar bilheterias e caixas registradoras, bater recordes e receber prêmios, mas continuará morta. A vida se passa nesse vão _ longo túnel escuro _ em que temos a coragem de tocar o intocável.
 
 
José Castello
 
 
PS: Sugestão de postagem do amigo Adauto Neto

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